domingo, 3 de janeiro de 2021

O odor a nada

 


JÁ CAMINHÁVAMOS PARA UM MUNDO SEM CHEIRO. CÁ ESTAMOS. CONSEGUIREMOS VIVER COM QUATRO SENTIDOS?

D

as coisas assombrosas que tomámos conhecimento é que ficámos sem direito a cheirar o mundo: 2020 poderá ficar conhecido como o ano sem odor. O uso da máscara impede-nos nas cidades de desfrutar o bom e o mau típico das miscelâneas atiradas em golfadas, provocadas por máquinas e odores diversos que iam alternando entre cantos de sereia nebulosos do consumo e chapadões azedos do vomitado de noitadas. Mas também porque a “distancia social” nos criou a ideia de que devemos suster a respiração junto ao outro e nunca cometer o erro eventualmente funesto de o cheirar. Queremos os outros ao longe, de máscara e desinfetados, no máximo que se detete neles uma réstia de álcool hospitalar. Os perfumes enquanto marca identitária, garantida nos anúncios, perderam a razão de existir. No máximo, desejamos que não cometamos o erro de na ida à casa de banho no almoço a máscara não fique com o cheiro das iscas. Algo de que nos iremos arrepender para o resto do dia.

Mas há mais. A covid-19 tem a particularidade de atacar o olfato. Não só em fases iniciais. Há recuperados que ficam sem esta capacidade sensorial por meses. O que é um mistério. O olfato sempre foi considerado a Gata Borralheira dos cinco sentidos, desprezadinho, e não uma janela para a compreensão do cérebro. Agora há finalmente um olhar para as repercussões do que é viver sem cheiro. E constata-se que sem o olfato não há paladar, perde-se parte do mundo em que se vive, vem uma natural falta de apetite, seguida de depressão. É uma condição perturbadora, a anosmia, e que finalmente está a ter a devida atenção. Nós, comuns mortais, não dedicamos um minuto a pensar no olfato, mas é uma coisa extraordinária que temos bem à frente dos nossos olhos. Um complexo sistema que se renova regularmente e que comunica com o cérebro. Algo tão inexplicável como um odor que é reconhecível e que por sua vez remete para memórias ou até sentimentos. E tem havido imbróglio. Quando há problemas e há uma regeneração “distorcida”, os cheiros podem vir afetados. Algo que se chama de “parosmia”. A comida favorita cheira a papel molhado. A pessoa amada a quarto com mofo. Tem acontecido a recuperados de covid.

E, contudo, 2020 foi o ano em que a União Europeia decidiu investir num projeto de Inteligência Artificial (IA) e Deep Learning que agrupa uma equipa de investigadores que vai de químicos a linguistas e que pretende absorver, aprender e recriar os odores da Europa do século XVI a XX e que se chama Odeuropa. Passa numa primeira fase pela leitura pela IA das descrições e interpretações de odores em textos, em línguas europeias contemporâneas — dado que a IA ainda não tem capacidade de interpretar formas arcaicas de idiomas e os odores são referidos de forma diferente em textos antigos. Uma coisa é certa: o passado tem um cheiro muito mais potente do que o presente. Vivemos numa época inodora. Uma cidade romana decente seria um embate olfativo quase insuportável para um europeu da atualidade: o cheiro das lavadeiras que usavam urina para branquear a roupa, as fossas com dejetos humanos, o potente cheiro dos curtidores, a carne a ser vendida e as moscas à sua volta, a lenha e o fumo — ora nada disso é descrito, porque é a normalidade. (E, no fundo existe ainda em muito local do mundo, 2 mil anos depois fora da Europa, mas com nuances africanas ou asiáticas, posso garantir.)

É uma pena que Portugal não esteja neste projeto, porque seria capaz de acrescentar algo. Leio antecipadamente sobre o que era o cheiro a guerra e a Waterloo e o seu odor a pólvora, a terra húmida e ao perfume intenso de Napoleão; o resultado dos banhos que se foram perdendo na Idade Média até terem desaparecido na Idade Moderna e a limpeza a seco a que Luís XIV se submetia a custo; o smog da industrialização da Inglaterra; a chegada do tabaco e do café do novo mundo, que trouxeram novas intensidades densas para os lares (e bocas). Mas não leio sobre as especiarias, por exemplo, trazidas pelos portugueses, de canelas e açafrões; os esgotos e carros que finalmente tiraram das cidades a merda dos cavalos e homens. Um presente purificado que caminhou para o 2020. A covid trouxe uma anosmia simbólica. O cheiro morreu. E isso é mau.

Há a tese de que existe uma cultura unificadora europeia em termos de odores e sua perceção, logo que nos une, independentemente de a compreendermos — dado que o cheiro é cultural e evolui e conecta as diferentes comunidades. Acho lindo. A UE é política, económica e cultural e cheira ao mesmo. E agora a nada.

Este é um momento em que parece termos chegado ao fim da linha. Uma podridão sem cheiro. Estávamos a caminhar para uma higienização da sociedade, uma desodorização do humano, o banho antes e depois do sexo e com desodorizante e eau de parfum no durante, o humano sem sabor e odor humano. Este ano, o vírus tratou do que restava. Separou, colocou máscara e aniquilou células dos neurónios olfativos. E isso é mesmo de mau gosto.

Todos sabemos, mesmo os que não sabem, que o sinal que já não amamos é quando deixamos de suportar o cheiro de quem amámos. Ora o vírus é tão filho da mãe, está tão a gozar connosco, que é capaz de nos colocar a ter repugnância pelo cheiro de quem verdadeiramente amamos. Isto é perverso. Estamos reduzidos a quatro sentidos. Cegos de odor. Um dia, espero, voltarei a libertar o meu nariz. Espero que ele ainda seja senhor de si.

Luís Pedro Nunes. O mito lógico. E-Revista Expresso, Semanário #2514. 31.12.2020


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