Para os filósofos, como meditação demonológica acerca do VIII poema de “O Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro.
Para as crianças grandes, como apólogo humorístico.
Para os meninos pequenos, como verdadeiro conto de Natal.
I
Como toda a gente sabe, e os meninos melhor que ninguém, o Natal é uma coisa muito velha. O que nem toda a gente sabe é que, no princípio, ele não era pai; nem era velho, e não tinha, portanto, barbas brancas. Assim, quando o menino Jesus nasceu, já todos os meninos punham o sapato na chaminé.
A única diferença era que a chaminé não tinha, como hoje, fogão de gás ou fogareiro. Depois, com o menino Jesus, veio outra diferença: também ele punha o sapatinho, que, por acaso, era uma sandália.
Isso durou pouco? Não, porque o menino Jesus só cresce e se faz homem quando os outros meninos crescem e julgam que se fazem homens. O que, e lá isso é verdade, não acontece a toda a gente, como os meninos terão muito tempo para ver. Mas isso é já outra história, que os meninos aprenderão, sem que ninguém lha conte.
A que vou contar começa quando o menino Jesus ia fazer sete anos, idade que é muito importante, visto que são sete as maravilhas do mundo. O menino Jesus, como os outros meninos, tinha vontade de crescer e não acreditava no Natal. Ele bem sabia quem punha os brinquedos na sandália (era a Mãe), e, por não haver então lojas de brinquedos, e, mesmo que houvesse, não terem os pais do menino Jesus dinheiro para os comprar (os brinquedos já eram muito caros), ele bem vira S. José estar a fazer uma carrocinha, às escondidas. Por isso, naquela tardinha, sempre muito comprida, que há antes da noite de Natal, noite que, por sua vez, é a mais comprida do ano, o que lhe valeu ser ela a Noite de Natal; por isso, como ia dizendo, o menino Jesus, que estava à espera de lhe darem a carroça, fingia que se não importava, fingia, até, não esperar coisa alguma. A tarde estava muito bonita, segundo me disseram, e é natural que estivesse: o Natal ia ser pai e, o que é muito mais, ganhar as suas barbas brancas. O céu fazia-se verde e amarelo e cor-de-rosa, que são cores que as pessoas grandes não gostam de ver no céu, e que todos os meninos sabem que lá se vêem muito bem. O menino Jesus, é claro, via-as melhor que ninguém. E, então, para disfarçar, começou a contar as nuvenzinhas soltas, que estavam todas paradas, muito quietas de propósito para ele contar – mal imaginavam o que lhes ia acontecer. O menino Jesus sentara-se numa pedra (pedra que ainda lá está na terra dele, embora ninguém saiba qual é), à beira do caminho, e, com uma varinha (que não era de condão, pois só as fadas precisam desses objectos), fazia riscos na poeira. A poeira, coitada, era mais lama que qualquer outra coisa, porque chovera de manhã, e o sol não tivera tempo de a secar. Ora, o menino Jesus, umas vezes olhava para o céu, outras olhava para o chão, e qualquer pessoa com dois dedos de testa logo perceberia que ele estava a desenhar as nuvens. Mas parece que estas coisas são muito difíceis de perceber, como os meninos sabem pelas perguntas parvas que muitas pessoas crescidas costumam fazer.
– Que estás tu para aí a riscar, pequeno?
O menino Jesus voltou-se (quando nos fazem perguntas destas, a gente está sempre de costas), e viu um homem muito bem vestido que até parecia mentira. O menino não se deixou enganar, porque a pergunta estragara o fato do homem, e era como se estivesse todo rasgado e com a fralda de fora.
– Estou a fazer riscos.
– Isso vejo eu. Que riscos?
– Só riscos.
O homem mostrou uma cara muito má, e o menino Jesus foi pondo os pés a jeito, para o caso de ser preciso levantar-se de repente e fugir a correr.
– Estás a armar em esperto, mas a mim não enganas.
O menino Jesus, estava farto de enganar imensa gente, riu-se, mas só por dentro, por causa da má cara do homem.
– É mau fazer riscos? – perguntou.
– Se é! Ora experimenta lá.
O menino Jesus ficou desconfiado, e traçou um risco, um muito pequenino. E qual não foi o seu espanto ao ver a varinha ficar presa ao chão! Ver não viu, mas quis tirá-la e não pôde.
Claro que, dessa feita, quem se riu foi o homem. Ora é sabido que o diabo não se pode rir muito alto, porque lhe sai enxofre pelos intervalos do riso. E assim aconteceu. O menino Jesus sentiu o cheiro, viu o fumozinho sair da boca do homem, era quase noite (anoitecera quase de repente), não passava ninguém na estrada, ele estava um bocado longe de casa, e, apesar de ser quem era, teve medo, um medo enorme, um medo ainda maior que o diabo.
Estão a ver o menino Jesus nestes assados. Que faria qualquer menino? Evidentemente, não mostrava medo, que é a melhor maneira de assarapantar o demónio. Foi o que ele fez. Fingiu que não queria a vara para nada (e queria porque era uma bela vara, muito direita), e disse:
– Bem, são horas de voltar para casa.
– Ah, sim? E porquê? – (o diabo a ver se ele caía).
– Tenho lá o Natal à minha espera.
O diabo sentiu vontade de rir; mas, aflito com o fiasco do fumo pelos intervalos do riso, mordeu os lábios e perguntou:
– O Natal? Mas que Natal é esse?
– Se calhar não sabe o que é! – exclamou o menino Jesus, e tentou levantar-se.
Aí é que foram elas! Estava pregado à pedra, como a vara à lama! Um caso sério! Se ao menos passasse alguém! Mas qual! Nem vivalma, que o diabo não conta, não é gente. E como nessa altura ainda não havia santos por quem chamar, a Nossa Senhora estava em casa, e o menino Jesus, apesar de saber que era menino Jesus, não sabia que era filho de Deus, não havia salvação possível. Não havia!… Nisto, porque era um menino igual aos outros meninos, teve uma idéia muito luminosa. Era perigoso, mas o único remédio.
– Dá-me a sua mão? Ajuda-me a levantar daqui?
Mesmo o que o diabo queria! E com os olhos a luzir de gozo, o diabo estendeu-lhe a mão. O pior foi esquecer-se – e o diabo nestas alturas é muitíssimo esquecido – de firmar-se bem nos pés. O menino, mal lhe deu a mão, pôde levantar-se… e zás: meteu uma perna entre as do diabo e deu-lhe um encontrão. O diabo desamparado (é como ele está sempre, não se esqueçam), esbracejou e estatelou-se na lama, que, naquele sítio, estava muito bem amassada pelas rodas dos carros, mesmo destinada a traseiros do diabo. E quando se ergueu, furioso, todo sujo, o menino Jesus já ia longe, e até parecia que levava asas nos pés. Ao entrar em casa, ofegante, o menino Jesus voltou-se para trás e ainda viu, na noite escura, um clarão de raiva.
II
O menino Jesus não disse nada a ninguém. Sentia-se tão contente por ter feito o diabo estatelar-se em plena estrada! Mas uma coisa o preocupava: o diabo ficara sabendo que ele estava à espera do Natal, porque lhe tinha dito que o Natal estava à sua espera – ora o diabo percebe tudo ao contrário, e ficara portanto a saber a verdade. Era inevitável que apareceria, pela calada da noite, e vestido de outra maneira, para não ser conhecido. Viria com toda a certeza. E agora? Agora…
III
Alta noite, o menino Jesus, que se fora deitar a dormir com um olho aberto e outro fechado, ouviu os pais levantarem-se, e irem, pé ante pé, para a lareira, onde ele, é claro, antes de deitar-se, pusera a sandália do pé direito. Como se sabe esta sandália é sempre melhor que a outra, e deve preferir-se em tudo: chaminés, pontapés, etc., a menos que se seja canhoto dos pés, o que é muito raro.
O menino Jesus estava de costas voltadas à lareira, porque fazia frio, e porque, também, se estivesse de frente, logo se veria que não dormia e espreitava. É evidente que a casa era muito pequena e pobre, e os quartos eram um só, dividido em dois, por cortinas muito velhas, que Nossa Senhora se cansava a remendar e o menino Jesus a esburacar. Ora, o menino Jesus, mal os pais se recolheram, sentou-se na cama, que, pela mesma razão de a casa ser pequena, era um colchão no chão, com pouca roupa, tão pouca, que o menino raras vezes se despia, muito menos no Inverno. Era, sem dúvida, um mau costume, mas também o Inverno é um mau costume, que, além de ser preciso para a terra descansar, se repete invariavelmente todos os anos: e o menino Jesus apesar de ter só sete, já muito bem sabia que, quando tinha frio, era mesmo frio o que tinha. Sentou-se, pois, na cama. O lume, na chaminé, apagava-se pouco a pouco; viam-se as faúlhas correndo pela madeira, umas atrás das outras, enquanto as pontas dos troncos iam ficando brancas. O diabo não tardava aí. Um estalido. O menino Jesus olhou para a porta. Não era nada. Depois sentiu passos na terra batida. Olhou: era um rato. O rato andou de um lado para o outro (e se o rato fosse o diabo disfarçado?), até se convencer que tais pobretões nem na noite de Natal deixavam cair migalhas. Passou muito tempo – ao menino Jesus parecia imenso quando – … vinha alguém pela chaminé abaixo. Oh se vinha! Com o lume assim a apagar-se, não se via nada; mas, para quem entrasse pela chaminé, ainda era luz que chegasse. E chegava: apareceram umas sandálias, umas pernas, uma fímbria de túnica vermelha (é o diabo, pensou o menino Jesus), mais túnica vermelha, ainda mais túnica vermelha, até que uma figura ficou de pé, ao lado do fogo, e deu uns passos para dentro de casa. Trazia um saco às costas. Era o diabo! O menino Jesus ficou… calculem como ele ficou, porque, no fundo, muito lá no fundo, não esperava que o diabo voltasse. E ali estava ele, com saco e tudo. Viu o diabo abaixar-se e pegar na carrocinha, que estava mesmo em cima da sandália. É preciso dizer-se que a carroça não era muito grande, mas também não era muito pequena, e mais caberia a sandália na carroça, do que a carroça na sandália. Não, lá isso não! Nunca tinha um brinquedo senão os que inventava e fazia, e aquele, tão bonito, o diabo vinha buscá-lo! E mesmo que não fosse bonito, não lho dava. Brinquedos a diabos! Toda a gente sabe que o diabo não brinca e, por isso, faz asneiras! Não, lá isso não! E saltou da cama, correu para a chaminé… e tirou a carrocinha da mão do diabo, que, já a abrir o saco, nem dera por ele.
– Boa noite! – disse o diabo, com voz maviosa.
– Boa noite… Por que é que não entrou pela porta? Era só bater, que eu abria – perguntou o menino Jesus, pondo a carroça debaixo do braço.
– Para não acordar ninguém…
– Eu estava acordado.
E o diabo, muito ingenuamente, como se não fosse ele: – Ai que linda carroça! Quem lha deu?
– Tem alguma coisa com isso?! Que é que o senhor quer?
– Eu só queria brincar com a carroça. Deixa-me brincar um bocadinho?
– Não tem vergonha de ser tão grande e querer brincar ainda? – (era o que a mãe lhe dizia, quando ele andava pela casa a fazer das suas).
– Eu? Vergonha? – e o diabo ia rir-se, mas tornou a lembrar-se do fiasco do enxofre pelos intervalos do riso. – Então não me deixas brincar?
O menino Jesus dava voltas à cabeça, e não achava maneira de livrar-se dele. Só se fosse…
– Sempre quer? Mas só um bocadinho.
– Como? Como? – (O diabo todo satisfeito).
– Eu faço de carroceiro e o senhor faz de cavalo.
– Vamos a isso! Vamos a isso! – e o diabo logo de gatas, para ele o atrelar à carroça.
A carroça estava muito bem feita; não lhe faltava nada, até arreios tinha. Foi nessa altura que o menino Jesus, ao reparar nas barbas brancas que o diabo trazia (barbas, aliás, de uma brancura imaculada), viu bem o que lhe convinha fazer. Muita gente julga que o diabo pode esconder tudo o que é e tem, menos os pés de cabra; manifestamente isso não é verdade, como se depreende desta história, em que ele aparece de sandálias, com a perna à vela. Se as pernas eram dele ou emprestadas, o menino Jesus tinha muito mais em que pensar. E pensou e disse:
– Não te posso pôr a cabeçada (como o diabo fazia de cavalo, tratava-o por tu – não era por ser o diabo), as tuas barbas são tão compridas! E tão bonitas, que se estragam!
E o inimigo, muito convencido, a cofiá-las:
– São bonitas, não são? Bem me custaram a arranjar.
O menino Jesus então ficou logo a saber o que queria. E tornou a dizer:
– Não te posso pôr a cabeçada; e, se não ponho, como hás-de puxar a carroça?
O diabo, que não tem paciência nenhuma (e por isso é tão fácil de reparar, quando começa a estorcer-se), o que queria era acabar com aquela paródia, tanto mais que lhe parecia o menino Jesus já ter dado por ele (e só parecia, porque o diabo nunca tem a certeza). E, por isso, propôs:
– Mas eu levanto as barbas, e tu passas a cabeçada…
Assim se fez, e o menino Jesus, quando ele as levantou, viu a barba de chibo, pêra retorcida, que o diabo nunca pode tirar, como se está a ver. As barbas brancas, tão imaculadas, é claro que eram postiças.
Mal o atrelou bem atrelado, o menino Jesus, convencido de que o diabo desapareceria e deixaria a carroça, disse uma palavra secreta que sabia (todos os meninos sabem palavras dessas, só não sabem qual serve). O diabo ficou na mesma. O menino Jesus então disse outra. O diabo, nada. Ia o menino Jesus então disse outra. O diabo, nada. Ia o menino Jesus a dizer a terceira, pergunta o diabo, já aborrecido, como era de calcular:
– Que raio de brincadeira é esta que nunca mais começa?
O menino Jesus puxou-lhe pelas barbas e gritou a terceira palavra, a mais forte de todas… O diabo deu um estoiro, como os automóveis quando querem arrancar, e saiu pela porta fora, com tanta força, tanta, tanta, tanta, que a atravessaram ele e a carroça, de uma vez – e a porta ficou inteirinha no mesmo sítio.
O menino Jesus, com as barbas postiças na mão, abriu cautelosamente a porta. Não se via um palmo adiante do nariz, mas não se viam também, nem o diabo nem a carroça… Nisto, as barbas soltaram-se da mão do menino, e começaram a subir ao céu, e a crescer, a crescer, a crescer, e, quando chegaram lá acima, já chovia a cântaros. Está-se mesmo a ver que as barbas eram as nuvens que o menino Jesus contara.
O menino voltou para dentro e fechou a porta bem fechada; em casa não se via nada, porque o lume se apagara de todo. O menino Jesus, muito devagarinho, meteu-se na cama. Estava ele a pensar na carroça, ouviu S. José dizer:
– Não ouviste um estoiro?
E a voz de Nossa Senhora a responder:
– Ouvi. Dorme descansado. São coisas do diabo.
Sua mãe sabia! O menino Jesus ainda ficou, se é possível, com maior admiração por sua mãe.
IV
Como a noite de Natal é muitíssimo comprida, a história não acaba aqui; tanto mais que ainda não se ficou a saber a razão de o pai Natal ser pai e ter enormes barbas brancas.
O menino, se, quando se deitara a primeira vez, ficara com um olho aberto outro fechado, agora, sem a sua carroça, não conseguia fechar nenhum deles. E estava nessa aflição… começou a ouvir barulho dentro da chaminé. Um barulho de nada, pela chaminé abaixo. Era de mais: aquele descarado já levara a carroça, e ainda voltava!
O menino Jesus levantou-se, foi para o pé da chaminé, e pegou num ferro muito grande que lá havia para arrumar as achas. Vinha pela chaminé abaixo uma claridade esquisita. E vinham umas sandálias… e umas pernas… e uma fímbria vermelha… (é ele, pensou o menino Jesus) e mais túnica vermelha… e ainda mais túnica vermelha… até que uma figura ficou, ali mesmo, ao lado das cinzas. O menino Jesus levantou o ferro… e o homem (parecia um homem) disse:
– Assim tu me recebes? Assim te ensinaram a receber o Natal?
Foi então que o menino reparou que ele não tinha barbas, nem brancas, nem pretas, ou só assim uma coisa muito rala que nem barba parecia. Não era, portanto, o diabo. Em todo o caso, não largou o ferro.
– Mas tu és verdade? E sempre vens? – (não o tratava por tu por ser ele o Natal, mas pela alegria de ele não ser o diabo).
– Eu, em pessoa. E venho, como vês.
– Essa é boa! E trazes-me alguma coisa?
– Nunca trago nada… Eu troco os brinquedos por outros. E esses é que eu trago comigo.
– Então, este ano, fico sem nada, porque tinha aqui uma carroça e o diabo levou-ma.
– O diabo?!
– Sim. Veio vestido como tu, só trazia barbas brancas, e levou-me a carroça.
– E deixaste?
– Que remédio tive! Ele estava atrelado, e não se ia embora…
– E agora, como há-de ser? Eu trazia uma carroça para trocar.
– Tu não dás brinquedos aos meninos que não têm brinquedos?
– Não posso dar.
– Por quê?
– Porque só troco.
– Por quê?
– Porque não posso dar.
O menino Jesus não perguntou mais; logo viu quais eram as respostas, e que o Natal não tinha outras, pelo menos para dar. Ali estava um, que não dava nada a ninguém. Mas ficar sem carroça não ficava.
– Tu tens a minha carroça.
– Tenho? Aonde?
– Anda por aí, atrás do diabo.
– Lá isso é verdade.
– Então, dá-me a que trazes.
– E a outra?
– A outra, quando encontrares o diabo, dizes que é tua, e pronto.
– E se não o encontro?
– Ora tens tanto tempo! Eu é que não tenho outra carroça!
– Bem… Parece que me convenceste.
E o Natal – pois era ele – pousou no chão o saco que trazia às costas (como se vê, o patife do diabo até um saco arranjara) e tirou de dentro uma carroça exatamente igual à outra. Mas igual, igual, nem a cabeçada faltava. E deu-lha. O menino ficou – imagina-se – contentíssimo. Tão contente, que se lembrou logo de uma coisa.
– E se o diabo, agora, anda a fingir de ti pelo mundo fora?
– É fácil. Custa um bocado mas é fácil.
– O que é que é fácil? Como te vais arranjar?
O menino Jesus bem via o Natal atrapalhado, sem saber como se havia de arranjar. Teve pena dele, que lhe dera a carroça, e, em troca, deu-lhe uma idéia, que é muito mais de dar do que uma carroça.
– Deixas crescer as barbas brancas. Das duas uma: ou o diabo anda com a barba dele, e toda a gente o conhece; ou põe outras barbas postiças, e basta puxar por elas para se ver se são de verdade.
– Bela ideia, sim senhor, que bela ideia! – Mas depois de pensar um bocado, o Natal acrescentou:
– Não chega. Tenho de ser o Pai Natal.
– Porquê?
– Porque o diabo não pode ser pai.
– Não?
– Não. Os filhos do diabo são sempre filhos de outras pessoas.
– Então passas a ser o Pai Natal e a ter barbas brancas.
Palavras não eram ditas, e o Natal logo Pai e com umas barbas quase a chegarem aos pés, tão brancas, tão brancas, que a claridade agora era das barbas.
Depois deste milagre (foi um milagre, evidentemente), o menino Jesus sentiu-se com imenso sono, o sono da noite toda e mais algum. O Pai Natal percebeu, sorriu, ajudou-o a deitar-se… E o menino Jesus nem chegou a ver como ele saiu, porque, apesar da curiosidade, adormeceu logo. Com a carroça debaixo do braço, é claro, não voltasse o diabo… (e é a razão de os meninos dormirem agarrados ao brinquedo de que gostam mais).
V
No dia seguinte, dia de Natal, era feriado, tal qual como hoje. Andava muita gente a passear nos campos, e o menino Jesus andava na estrada, a brincar com a carroça. Claro que olhava, com desconfiança, para todas as carroças que passavam, a ver se alguma delas era igual à sua. Mas nenhuma era. Foi brincando, brincando, e já se esquecia desta história toda, quando viu um homem, lá ao longe, num sítio onde andava menos gente, sentado numa pedra e a fazer riscos no chão, com uma varinha. O menino Jesus teve pena dele, quis avisá-lo e aproximou-se.
Ora, o menino Jesus falava uma língua esquisita – o aramaico – que muitos dos judeus não entendiam, e ainda hoje, segundo parece, não entendem. Mas ele não tinha culpa; era a que lhe ensinaram em pequeno, mal começara a estender os braços… Os meninos ainda se lembram de querer agarrar nas coisas que estão longe? É isso.
Aconteceu, então, que o homem não só não percebeu o que o menino lhe dizia, como se zangou e o enxotou, ameaçando-o com a vara. É claro que o menino Jesus deitou a fugir. Quando já estava suficientemente longe quis ver… E o que viu?
Ao lado do homem, parara uma carroça exactamente igual à sua, puxada por um tipo que já metera conversa com o outro sentado. E parecia que a conversa era engraçada, porque ambos se riam muito. Só da boca do que fazia de cavalo saía um fumozinho branco, que o menino Jesus muito bem conhecia.
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Por tudo isto é que o Natal é pai e tem barbas brancas, para se distinguir do outro, que traz brinquedos do inferno, brinquedos que, como os meninos também sabem, são feitos neste mundo, tal qual como os outros brinquedos.
Ora como se vê por esta história, e ao contrário do que até eu próprio julgava quando comecei a escrevê-la, houve, não uma só, mas inúmeras razões, para o Natal ser pai e ter barbas brancas. Para acabar, não me perguntem de quem ele é pai. Não façam perguntas tolas, como as pessoas crescidas. Muito em segredo, sempre digo que não sei ao certo, o que sei não posso dizer… e, de resto, talvez os meninos venham a saber mais do que eu.
1944.