quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Escola a ler Agustina

 

#100agustina
















Amanhã, todos os alunos da Camilo vão ler / ouvir ler textos de Agustina Bessa-Luís - uma forma de homenagear a autora de uma vastíssima obra que se reparte por múltiplos géneros (ficção, teatro, crónica, literatura infantil, ensaio romanesco, ...).


Este é o texto selecionado para o 10º ano, o 1A1, o 1A2 e o 3A:


A pintora Helena Vieira da Silva com o marido, Szenes Árpád,
também ele pintor (húngaro, naturalizado francês)




Quando eu vivia em Esposende, um dia apareceram o Arpad e a Maria Helena. Vinham num carrão enorme, desses em que se passeia dentro como num convés ou tombadilho. Fomos pela estrada de Viana, e também o meu cão, um caniche meio vadio, de feitio tão atravessado como a raça. Mordeu toda a gente em casa e na vila; havia mesmo a profissão a meio-tempo do que se dizia mordido pelo meu cão e que pedia indemnização e acabava num contrato modesto. Outras vezes prendiam-no para o dar por desaparecido e receberem alvíssaras. Era o bicho mais briguento e caprichoso que já vi, e, nas noites de lua, entrava nos lameirais do rio como Pompeia nos banhos de leite; ou refocilava nas carcaças das gaivotas, com expansões de riso homérico, eu que o diga. Pois esse cão, Dulho ou Botinhas, ou Boneco, do primeiro batismo, foi connosco naquela tarde húmida, e aprendeu muito. Punha nos vidros as patas, saciando-se da paisagem. Arpad tremia de ver acidentes hipotéticos na estrada, que era concorrida como um presépio. «Tanta bicharada!» – dizia Arpad, entre receoso e estupefacto. E era. Carrocinhas com a cruz de Lorena pintada, galinhas sentimentais colhendo o malmequer e o saltarelo; meninos nus, de pancinha como um relógio de esmalte; mulheres vindas do campo, outras choutando as vacas, mais contando casos às portas, com braçados de couves e uma bacia de roupa à cabeça. Algumas usavam a faixa preta, as franjas pesadas de terra, nos dedos anéis de plaquée brincos de ouro nas orelhas onde caíam as mechas de cabelo traçado pelos carregos. «Bicharada… bicharada» – gemia Arpad. Tão diferente das estradas de França, onde o acidente é uma espécie de programa para adultos, com profissionais da técnica, da morte, de tudo.

Agustina Bessa-Luís, Longos dias tem 100 anos – Presença de Vieira da Silva, pp. 19-20

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