Testemunhos portugueses
Já está disponível o Diário de fevereiro de 1918
A Farsa de Inês Pereira é uma divertida comédia de caracteres e costumes que conta a história de Inês Pereira, jovem caprichosa e ambiciosa, que se encanta por Brás da Mata, galante combatente, mas é pressionada a casar com Pêro Marques, um lavrador simples e sem cultura. É na escolha de pretendentes e suas consequências que se centra esta farsa vicentina, uma das mais divertidas e satíricas da vida quotidiana do tempo de Gil Vicente, escrita a partir do ditado popular Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube e em resposta àqueles que no seu tempo o acusavam de plagiar as obras do teatro espanhol de Juan del Encina.
A versão da Filandorra respeita fielmente o texto original, mas é actualizado no tempo e espaço ao século XXI, substituindo a figura de Inês Pereira por uma jovem “casadoira” que em vez de lavrar/bordar, está a atar e a pendurar alheiras… assim como todo o contínuo da solução dramatúrgica que traz o texto para a intemporalidade da obra vicentina. Folha de Sala (adaptado)
Gil Vicente deu o nome de Todo o Mundo e Ninguém às personagens principais desta cena. Acompanham-nas Belzebu, o diabo, e Dinato, o companheiro, que escutam a conversa daqueles e anotam o que dizem.
Com estas duas personagens, o dramaturgo pretendeu fazer humor, criticando, dando corpo à velha máxina ridendo castigat mores (a rir se castigam os costumes): caracteriza o rico mercador, cheio de ganância, vaidade, petulância, como se ele representasse a maioria das pessoas na terra (ele é Todo o mundo), e atribui ao pobre, virtuoso, modesto, o nome de Ninguém, para demonstrar que praticamente ninguém é assim no mundo.
Ninguém: Que andas tu aí buscando? Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar: delas não posso achar, porém ando porfiando por quão bom é porfiar. Ninguém: Como hás nome, cavaleiro? Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo. Ninguém: Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência. Belzebu: Esta é boa experiência: Dinato, escreve isto bem. Dinato: Que escreverei, companheiro? Belzebu: Que ninguém busca consciência. e todo o mundo dinheiro. Ninguém: E agora que buscas lá? Todo o Mundo: Busco honra muito grande. Ninguém: E eu virtude, que Deus mande que tope com ela já. Belzebu: Outra adição nos acude: escreve logo aí, a fundo, que busca honra todo o mundo e ninguém busca virtude. Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse? Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fizesse. Ninguém: E eu quem me repreendesse em cada cousa que errasse. Belzebu: Escreve mais. Dinato: Que tens sabido? Belzebu: Que quer em extremo grado todo o mundo ser louvado, e ninguém ser repreendido. Ninguém: Buscas mais, amigo meu? Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê. Ninguém: A vida não sei que é, a morte conheço eu. Belzebu: Escreve lá outra sorte. Dinato: Que sorte? Belzebu: Muito garrida: Todo o mundo busca a vida e ninguém conhece a morte. Todo o Mundo: E mais queria o paraíso, sem mo ninguém estorvar. Ninguém: E eu ponho-me a pagar quanto devo para isso. Belzebu: Escreve com muito aviso. Dinato: Que escreverei? Belzebu: Escreve que todo o mundo quer paraíso e ninguém paga o que deve. Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar, e mentir nasceu comigo. Ninguém: Eu sempre verdade digo sem nunca me desviar. Belzebu: Ora escreve lá, compadre, não sejas tu preguiçoso. Dinato: Quê? Belzebu: Que todo o mundo é mentiroso, E ninguém diz a verdade. Ninguém: Que mais buscas? Todo o Mundo: Lisonjear. Ninguém: Eu sou todo desengano. Belzebu: Escreve, ande lá, mano. Dinato: Que me mandas assentar? Belzebu: Põe aí mui declarado, não te fique no tinteiro: Todo o mundo é lisonjeiro, e ninguém desenganado. Auto da Lusitânia, de Gil Vicente (extrato) |