domingo, 26 de março de 2017

Todo Mundo e Ninguém, de Gil Vicente



Entremez inserido no Auto da Lusitânia (1531)





Argumento:

Um mercador abastado, chamado "Todo o Mundo", e um homem pobre, cujo nome é "Ninguém", encontram-se e conversam sobre o que desejam neste mundo. 

Entretanto, chegam dois demónios (Belzebu e Dinato) que ouvem esta conversa e, a partir dela, tecem comentários irónicos, fazem trocadilhos e colocam sob questionação temas / valores ligados com a verdade, a cobiça, a vaidade, a virtude e a honra dos homens. Acresce, ainda, que os nomes escolhidos para o mercador rico e o homem pobre permitem ao dramaturgo ampliar o alvo da sua crítica e explorar de forma irónico-lúdica o velho topos do desconcerto do mundo: Todo o Mundo é ganancioso, vaidoso, petulante sem escrúpulos (como se esta personagem representasse a generalidade das pessoas na terra, todo o mundo); Ninguém é pobre, virtuoso, honrado, modesto (ou seja, ninguém é assim no mundo...).

Representado pela primeira vez em 1532, como parte de uma peça maior, chamada Auto da Lusitânia (no século XVI, chama-se auto ao drama ou comédia teatral), este entremez* (episódio burlesco) é de autoria de Gil Vicente, considerado o criador do teatro português.  

* O entremez é breve composição dramática de um só ato, de género burlesco, situado geralmente no intervalo ou no fim de uma peça de longa duração.
"entremez", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.com/dlpo/entremez [consultado em 26-03-2017].








Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:


Ninguém: Que andas tu aí buscando?


Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:

                         delas não posso achar,

                         porém ando porfiando

                         por quão bom é porfiar.


Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?


Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo

                         e meu tempo todo inteiro

                         sempre é buscar dinheiro

                         e sempre nisto me fundo.


Ninguém: Eu hei nome Ninguém,

                 e busco a consciência.


Belzebu: Esta é boa experiência:

               Dinato, escreve isto bem.


Dinato: Que escreverei, companheiro?


Belzebu: Que Ninguém busca consciência.

                e Todo o Mundo dinheiro.


Ninguém: E agora que buscas lá?


Todo o Mundo: Busco honra muito grande.


Ninguém: E eu virtude, que Deus mande

                 que tope com ela já.


Belzebu: Outra adição nos acude:

               escreve logo aí, a fundo,

               que busca honra Todo o Mundo

               e Ninguém busca virtude.



Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?


Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse

                         tudo quanto eu fizesse.


Ninguém: E eu quem me repreendesse

                 em cada cousa que errasse.


Belzebu: Escreve mais.


Dinato: Que tens sabido?


Belzebu: Que quer em extremo grado

                Todo o Mundo ser louvado,

                e Ninguém ser repreendido.


Ninguém: Buscas mais, amigo meu?


Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.


Ninguém: A vida não sei que é,

                 a morte conheço eu.


Belzebu: Escreve lá outra sorte.


Dinato: Que sorte?


Belzebu: Muito garrida:

               Todo o Mundo busca a vida

               e Ninguém conhece a morte.


Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,

                          sem mo Ninguém estorvar.


Ninguém: E eu ponho-me a pagar

                 quanto devo para isso.


Belzebu: Escreve com muito aviso.


Dinato: Que escreverei?


Belzebu: Escreve

               que Todo o Mundo quer paraíso

               e Ninguém paga o que deve.


Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar,

                         e mentir nasceu comigo.


Ninguém: Eu sempre verdade digo

                 sem nunca me desviar.


Belzebu: Ora escreve lá, compadre,

                não sejas tu preguiçoso.


Dinato: Quê?


Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,

                E Ninguém diz a verdade.


Ninguém: Que mais buscas?


Todo o Mundo: Lisonjear.


Ninguém: Eu sou todo desengano.


Belzebu: Escreve, ande lá, mano.


Dinato: Que me mandas assentar?


Belzebu: Põe aí mui declarado,

               não te fique no tinteiro:

               Todo o Mundo é lisonjeiro,

               e Ninguém desenganado.


Gil Vicente, 1531. Texto representado pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III (escrito para ser representado aquando do nascimento do príncipe herdeiro, D. Manuel).


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