Jornal Público publica conto inacabado Tabucchi
Italiano de nascimento, António Tabucchi (1943-2012) apaixonou-se por Fernando Pessoa quando, em Paris, na Sorbonne, leu uma coletânea de poemas do autor de "Tabacaria", traduzidos em francês. Decidiu então vir para Portugal aprender a língua lusíada para melhor compreender o poeta.
Aqui conheceu Marisa José Lancastre, que viria a ser sua mulher, aqui veria nascer os seus dois filhos e aqui viria a morrer, de doença prolongada.
Escreveu, entre outros títulos, Notturno Indiano (1984), Pequenos equívocos sem importância (1985), Chamam ao telefone o Sr. Pirandello (1988), Requiem, uma alucinação (1992), Sonhos de sonhos (1992), Os últimos três dias de Fernando Pessoa (1994), Afirma Pereira (1994), obra premiada, que foi adaptada ao cinema com Marcello Mastroianni no papel principal, A cabeça perdida de Damasceno Monteiro (1997), Tristano morre (2003), Está a fazer-se cada vez mais tarde (2003), O tempo envelhece depressa (2012).
Manuscrito do texto |
Maria José Lancastre, viúva de Tabucchi, explica como o escritor chegou ao conto inacabado que, o público publicou na sua edição de 22 de março de 2015, e que termina com o artigo “o”:
"Este texto foi escrito em 2011. Teria sido certamente aperfeiçoado e, sobretudo, completado se o destino não se tivesse posto de permeio.
O episódio que inspirou Antonio Tabucchi foi-lhe contado por uma amiga, Helena Abreu, que o viveu pessoalmente quando andava na Faculdade de Letras de Lisboa e participava nas “excursões dialetais”, organizadas no fim dos anos 60 pelo professor de Linguística Portuguesa Luís-Filipe Lindley Cintra, o professor do conto. Os factos de que se fala tiveram lugar em Trás-os-Montes, numa aldeia do concelho de Chaves.
Nessa ocasião, enquanto o grupo chefiado pelo professor interrogava ao pé da sacristia uma velha mulher (parece que o professor estava aborrecido, pois que quase só lhe tinham trazido velhas desdentadas, o que poderia interferir com a pronúncia verdadeira dos vocábulos escolhidos para o teste linguístico), começaram a ouvir-se gritos terríveis na aldeia — gritos de mulheres desesperadas, agudos, quase inumanos, num coro de tragédia grega, gritos que feriam como ferro em brasa. Cedo se soube que a causa fora a chegada de um telegrama a comunicar a morte na guerra em África de um jovem da aldeia. Do grupo de Lisboa, houve quem ficasse petrificado e quem desatasse a soluçar. Aquela tinha sido uma das experiências mais fortes das suas vidas.
"Este texto foi escrito em 2011. Teria sido certamente aperfeiçoado e, sobretudo, completado se o destino não se tivesse posto de permeio.
O episódio que inspirou Antonio Tabucchi foi-lhe contado por uma amiga, Helena Abreu, que o viveu pessoalmente quando andava na Faculdade de Letras de Lisboa e participava nas “excursões dialetais”, organizadas no fim dos anos 60 pelo professor de Linguística Portuguesa Luís-Filipe Lindley Cintra, o professor do conto. Os factos de que se fala tiveram lugar em Trás-os-Montes, numa aldeia do concelho de Chaves.
Nessa ocasião, enquanto o grupo chefiado pelo professor interrogava ao pé da sacristia uma velha mulher (parece que o professor estava aborrecido, pois que quase só lhe tinham trazido velhas desdentadas, o que poderia interferir com a pronúncia verdadeira dos vocábulos escolhidos para o teste linguístico), começaram a ouvir-se gritos terríveis na aldeia — gritos de mulheres desesperadas, agudos, quase inumanos, num coro de tragédia grega, gritos que feriam como ferro em brasa. Cedo se soube que a causa fora a chegada de um telegrama a comunicar a morte na guerra em África de um jovem da aldeia. Do grupo de Lisboa, houve quem ficasse petrificado e quem desatasse a soluçar. Aquela tinha sido uma das experiências mais fortes das suas vidas.
A velha era a avó do rapaz morto e, apesar da notícia, continuou a soletrar palavras para dentro do gravador.
A tradução é minha.
Maria José Lancastre"