"Quiseste que te fotografasse, exatamente como milhares de outras pessoas, sentada na cadeira de bronze, ao lado da sua estátua de óculos e chapéu, em frente da Brasileira. Com isso arrumavas por agora Pessoa, achavas que apegar-se a ele em demasia era uma doença tipicamente portuguesa. Era preciso conhecê-lo, atravessá-lo e passar adiante. Exportá-lo para outras línguas, outros continentes, fazê-lo chegar a outros leitores ainda em tempo útil, nesta era veloz da informação. Vingar em Pessoa os séculos que Camões esperou para ser lido (e nunca foi suficientemente lido), vingar em Pessoa todos os que, por falta de tradução, nunca conseguiram chegar além fronteiras.
Uma cadeira inteligente, disseste sentando-te ao lado. Inteligentíssima. Todos os turistas lá querem ser fotografados. Provavelmente nenhum dos turistas lê os seus livros, mas é um bom ex-libris de Lisboa. Pode competir com o barco de São Vicente e os corvos, até porque os corvos não abundam por aqui.
A tua visão podia ser também assim: pragmática. Ou, segundo dizias, realista e útil.
No entanto não conseguias ser de facto realista. O amor, enquanto durava, transformava tudo.
E nada tínhamos a ver com os turistas. Éramos diferentes. Viajantes.
Os turistas vão à procura de lugares para fugirem de si próprios, da rotina, do stress, da infelicidade, do tédio, da velhice, da morte. Veem os lugares onde chegam apenas de relance e não ficam a conhecer nenhum, porque logo os trocam por outros e fogem para mais longe. Os viajantes vão à procura de si, noutros lugares. Que ficam a conhecer profundamente porque nenhum esforço lhes parece demasiado e nenhum passo excessivo, tão grande é o desejo de se encontrarem.
As agências de viagens e os turistas só se interessam, obviamente, pelas cidades reais. Os viajantes preferem as cidades imaginadas. Com sorte, conseguem encontrá-las. Ao menos, uma vez na vida."
Teolinda Gersão, A Cidade de Ulisses, Lisboa, Sextante Editora, 2013, p. 30-31