quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Creatina, a energia amoral

 

 

Apresento-vos o novo rei dos suplementos. Aguenta o corpo e aguenta a mente. Não dá poderes nem é miraculoso. Faz-nos chegar ao dia seguinte. Não dá. Repõe

Distraí-me. Então, não era a proteína que me ia salvar de mirrar como uma passa ao sol, tornar-me um esqueleto seco, sustentado de forma ténue por uma musculatura a esfarelar?

Não sou de intrigas, mas já constatámos que basta entrar num supermercado e ver que foi uma proteinificação geral. Está em todo o lado e ninguém sabe bem porquê. Aliás, minto. Se olhar com atenção, até sou capaz de ver que alguma junk food foi reabilitada com o selo redentor de “fonte de proteína”. Uma espécie de absolvição moral, uma aura de virtude em algo que ainda há meses sabíamos ser açúcar e químicos — talvez tenha servido para ajudar a ultrapassar a crise de confiança nos ultraprocessados. “Se é fonte de proteína…”

Mas, como disse, distraí-me. A prota (para os entendidos) já é um dado adquirido. A cena agora é a creatina. Sim, há uma creatina-maluqueira que extravasa gerações, géneros, classes e tipologias. E já saiu do ginásio para a banalidade do quotidiano. Assim como quem não quer a coisa, tornou-se o suplemento mais vendido do mundo. O que também se deve a ter conseguido o apoio de uma parte significativa da comunidade médica e científica — o que, no mundo dos suplementos, garanto, é muito raro.

 


Christoph Soeder/Getty Images



Perguntem a um médico o que acha deste ou daquele produto que dizem estar “em falta” — umas coisas com siglas de ervanária — e ele dirá que deve é comer bem, fazer exercício, apanhar sol, e que vai deitar dinheiro fora ou que não se sabe o que há nesses frascos. Enfim, uns picuinhas.

O interessante é que alguns dos grandes defensores da suplementação total (há quem tome dezenas de comprimidos “essenciais”) são, por vezes, os mesmos que depois são antivacinas e acham que a ciência é uma conspiração. Mas não é disso que estou a falar. É mesmo de algo que reúne algum consenso entre gym bros, mamãs recentes, pilates princesses, executivos cansados e a comunidade científica: a creatina é o pó branco, barato, que funciona. Tanto a nível físico como cerebral (neste segundo ponto, vou colocar umas reticências gordas... já lá vou).

A creatina não é algo que nasce nas árvores nem nos confins da Amazónia. É sintetizada naturalmente pelo fígado, rins e pâncreas, e encontrada em carne, peixe e aves. É armazenada nos músculos e é um potenciador de performance física. Mas o foco mudou para o cérebro quando estudos vieram evidenciar a hipótese de a creatina participar na formação de novos neurónios e ter efeitos na memória, foco, atenção sob privação de sono e humor.

E isto mudou tudo. Passou de suplemento de ginásio a molécula cerebral — um composto de energia e cognição. À validação científica no campo físico, muscular e energético, juntem-lhe uns podcasts de ciência e antienvelhecimento, um pouco de marketing e a viralidade eterna do boca a boca — e a creatina explodiu, tornou-se o suplemento absolutamente necessário. Para o corpo e para a mente — quer em formatos completamente inúteis (tipo gomas), quer para resultados com quantidades impossíveis de replicar no quotidiano, dado que alguns efeitos cognitivos em estudos foram alcançados, uma única vez, com doses elevadíssimas.

E aqui estamos. A creatina como um sintoma de uma sociedade exausta, mas funcional. Que procura uma energia estável, neutra e científica. Um suplemento que não seja dopante, não seja esotérico e ainda por cima barato. Um Prozac da fadiga.

O cérebro é o músculo do século XXI: faminto, hipertrabalhado e à procura de combustível. Se dizem que a creatina dá, a creatina serve.

Vivemos numa era em que a energia deixou de ser “força” para passar a ser “estabilidade”. A energia é chegar ao dia seguinte e levantar-se com vitalidade. No fundo, o corpo contemporâneo não quer mais força, quer constância. Quer não entrar em perda, quer não entrar em degradação. E é isso que a creatina parece prometer: energia muscular e cerebral para o cansaço ou para a velhice. É obrigatoriamente um sucesso para o nosso tempo, mesmo que haja ainda bastante por provar no campo cognitivo. Mas é aqui que está o busílis.

O cérebro é o músculo do século XXI: faminto, hipertrabalhado e à procura de combustível. Se dizem que a creatina dá, a creatina serve. A creatina é a tentativa de tratar o cansaço e o humor no cérebro como falhas energéticas. O que coloca o emocional de lado. Não há cá passado, nem traumas, nem dramas para a depressão. Falta, sim, energia. Um suplemento energético perfeito para um tempo imperfeito — sem precisar de metáfora.

Tal como na nova liturgia do “antienvelhecimento”, a creatina não é algo que se vá buscar algures, mas simplesmente repor. E isso não é um detalhe. Repor o que está em falta e é essencial, o que não se pode viver sem — eis o credo do ritual antiaging enquanto obsessão.

Se há indícios de melhoria de cognição em doentes de Alzheimer, então vou tomar já. Se protege o cérebro do impacto físico, então talvez o proteja do impacto informacional. Se alguns estudos indicam que a creatina pode melhorar a memória de curto prazo e atenuar sintomas de depressão, então é só uma questão de dosagem. Aumento.

Num mundo em que a maioria dos suplementos desportivos legais tem pouca ou nenhuma eficácia, a creatina é cientificamente comprovada na questão física e, vá lá, mais ou menos na cognitiva — mas serve. O corpo natural é insuficiente. E envelhecer é muitas vezes, apenas, ser cada vez mais insuficiente.

A creatina aparece como a molécula da modernidade energética: de um corpo (e de uma mente) que quer continuar a funcionar. Mesmo dormindo pouco. Mesmo cansado. Mesmo envelhecido.

A creatina não tem moral, não tem ideologia e não promete milagres. A dúvida é se cumpre sequer o básico.


Luís Pedro Nunes. Jornal Expresso, 5 de novembro de 2025  


1 comentário:

Ricardo Simões disse...

Quem faz esta leitura é conduzida levada, pelo sarcasmo exagerado, a pensar que temos que fugir a sete pés da Creatina e os estudos científicos, esses, para nada servem senão para utilizar as impressões em formato A5, dobrar em dois e quiçá limpar o sítio onde o Sol não brilha...agora falando a sério. Vamos lá acreditar no que a malta científica nos diz "tá bem"???