#literaciadosmedia #pensamentocritico

Tenho dois ou três cretinos de estimação. Acontecerá a muitos de nós, calculo. Atenção: ninguém é cretino por me insultar, embora eu prefira quem discorda sem baixar o nível. Mas, enfim, estaremos ainda dentro dessa malha, tão discutível quanto ampla, da liberdade de expressão. O cretino revela-se quando ao insulto junta a estupidez, clara, declarada, tantas vezes orgulhosa e petulante, como qualquer boa ignorância. Por vezes é-me difícil dar por eles. Como de momento basicamente não publico nada nas minhas páginas, lá têm eles de ir deixar o fel numa qualquer publicação muito antiga, o que tem o seu quê de cómico, como seja chamarem-me isto ou aquilo sobre jornalismo ou política ou coisa do género mesmo debaixo de uma foto onde simplesmente mostrei o meu cão a dormir descansado, sem legenda, considerandos, ironia ou mensagem criptada. Mas os meus dois ou três cretinos dão-se ao trabalho de criar uma página anónima, com respetivo nome falso e ausência de foto, para me enviarem mensagem privada, sempre a uma distância tão comprida quanto sensata: nunca me dizem quem são. Adiante.
Quero com isto trazer aqui uma das “bombas” mais cretinas do cretino: quando me acusam de ser hipócrita porque por vezes deixo críticas ao jornalismo. Ahahaha, ri o cretino, então este gajo é jornalista e está a malhar no jornalismo, escreve-me o cretino, julgando atingir-me em cheio com uma criptonite que não previ e que me deixaria supostamente embaraçado. Desconhecem os cretinos o conceito de pensar. Desconhecem que uma das maiores riquezas de empresas e ramos profissionais (riqueza em perda…) é a interrogação constante, a autocrítica, a análise de comportamentos, para verificação sistemática do que andamos a fazer, se respeitamos os valores que jurámos um dia abraçar. Há óptimos exemplos nas mais variadas profissões (quem dera que em todas…), médicos, advogados, engenheiros, políticos, militares, cozinheiros, empresários disto e daquilo. O que são, aliás, as Ordens de tantas e tão nobres atividades senão uma constante vigilância de valores basilares? Mas não adianta, os cretinos não alcançam que fiscalização e exigência começam por dentro.
Pertenço à equipa fundadora da SIC. E torna-se hoje, e cada vez mais, difícil conseguir explicar a plenitude do que foi esse período da televisão e do jornalismo. Sou grato por ter vivido momentos inéditos e irrepetíveis, dos quais realço a espantosa capacidade que as redacções tinham para conversa e reflexão constantes. Grande parte dos dias eram passados entre discussões bem quentes. E é curioso, e tão diferente de hoje; podia haver amuos breves aqui e ali, mas não havia quem se sentisse “ofendido” por ouvir o que não queria. Tínhamos mentalidade de pugilista, sabíamos que se íamos dar era provável também levarmos. Tínhamos ideias e posturas diferentes, mas no centro de tudo estava uma rocha que todos respeitavam: o que andamos a fazer, quais são os nossos deveres para com o público?
Em 2001, na SIC, discordei abertamente da fome de sangue com que investimos tanto numa ida ao Brasil para entrevistar Luís Militão, que acabara de mandar matar com requintes de crueldade seis portugueses que atraiu a Fortaleza. Não está em causa a qualidade do trabalho da equipa da SIC, acontece que sempre me causou enorme estranheza a relevância de ouvirmos assassinos confessos. Ainda assim, há um pormenor importante. À época, era o drama mais mediático, que deixara em choque um país inteiro pela aparente futilidade dos crimes e, acima de tudo, a lenta macabra violência. E a entrevista, conduzida pela Maria João Ruela poucos dias após o horror, levaria Militão a respostas tão aberrantes e desconcertantes que se tornavam parte integrante da notícia e levantavam cada vez mais dúvidas sobre os motivos reais. Ou seja, acabou por ser relevante, não o nego.
Já me parece despropositado todo este folclore, 24 anos depois, de ver televisões a anunciarem com orgulho um “exclusivo” com o monstro. Não percebo o valor acrescentado de deixá-lo revisitar e voltar a esfregar-nos na cara a crueldade, muito menos compreendo que uma das missões destas entrevistas seja, de alguma forma, “compreender” o assassino, primeiro passo para uma busca de absolvição pública. Não importa ter sido noutras estações, a SIC tem a sua boa parte de situações parecidas. É uma coisa minha, um arrepio que não me permite entender tempo de antena aos criminosos, à face mais feia do mundo que nos calhou. Não, não quero saber de mais pormenores que “ainda não se sabiam”. Dispenso. Mas eu é que estou deslocado.
O jornalismo tem uma história romântica com a violência, um pacto de venda que me impressiona. E há que lembrar que só se vende a quem compra. No limite, participamos todos nesta dança com o horror, ou não haveria tanto documentário, filme e série sobre “crimes reais”, negócio que nunca conheceu crise e só sabe crescer.
Rodrigo Guedes de Carvalho. Jornalismo e violência: um romance, Jornal Expresso, 25 de setembro de 2025