sexta-feira, 18 de julho de 2025

A brincadeira

 

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Milan Kundera - Portal da Literatura

“Nenhum grande movimento que pretende transformar o mundo pode tolerar o sarcasmo e a troça, porque é uma ferrugem que corrói tudo”, escreve Kundera



Enquanto decorre nos tribunais portugueses o lamentável julgamento de um vídeo humorístico, talvez alguns leitores se lembrem de A Brincadeira (1967), o romance de estreia de Milan Kundera. Mas a brincadeira, nessa história, tem consequências graves, como graves foram as consequências para o autor.

À época, Kundera era um crítico “construtivo” do comunismo, e o romance tem um registo paródico (os baptizados reconvertidos em “boas-vindas aos novos cidadãos”, o puritanismo nos costumes, a indistinção entre esfera pública e privada, a tentativa de “comunizar” o folclore, etc.). Vivia-se já depois de desestalinização e antes ainda do esmagamento da Primavera de Praga. Um dos protagonistas do romance, Ludvik, está enfadado com o socialismo sisudo, e brinca com isso: “(…) as minhas piadas eram pouco sérias, enquanto a alegria de então não admitia nem palhaçadas nem ironia, era uma alegria grave que se afirmava orgulhosamente ‘o optimismo histórico da classe vitoriosa’, uma alegoria ascética e solene, numa palavra, a Alegria”. Esta maiúscula diz tudo, sugerindo uma alegria oficial, uma alegria de Estado, tal como Robespierre impôs uma religião laica.

Para provocar uma rapariga renitente, Ludvik envia-lhe um postal que diz: “O optimismo é o ópio do género humano! O espírito são tresanda a estupidez. Viva Trotski!” Em três frases, três delitos: gozar com o optimismo antropológico marxista (comparando-o com a tese de Marx de que a religião é “o ópio do povo”); fazer pouco dos regimes autoritários onde as pessoas se dividem entre “sãos” e “degenerados”; e louvar o inimigo número um do comunismo ortodoxo, Trotski, de quem Estaline tinha dialecticamente discordado por interposta picareta.
 

 
A Brincadeira (1967) é o romance de estreia de Milan Kundera


Quando o postal é apreendido pelas autoridades, Ludvik perde tudo. A rapariga, os colegas e amigos, o direito de frequentar a universidade, e ainda é expulso do Partido e condenado a trabalhar numa fábrica e depois nas minas. Ele bem pode argumentar, “camarada, era só uma graça”, porque a “graça” era justamente a prova de que ele sofria de todas as taras de um não-comunista: individualismo, cinismo, cepticismo. “Até um niilista pode ser alegre”, lançam-lhe, como insulto supremo.

Uma parte substancial do romance, longo e demorado, discute outros assuntos, nomeadamente a vida erótica de Ludvik, as mulheres teimosamente castas, a rivalidade masculina, a fidelidade e a espera (no amor como no socialismo), a injustiça que não será reparada mas esquecida, a juventude como “idade lírica” (e em Kundera esse epíteto não é um elogio). Quanto à brincadeira original, Ludvik compreende que “nenhum grande movimento que pretende transformar o mundo pode tolerar o sarcasmo e a troça, porque é uma ferrugem que corrói tudo”. Alguém cometeu um erro, mas quem? Ele ou as autoridades? O postal era uma brincadeira que foi levada a sério, portanto alguém se enganou. Mas não será esse um pequeno erro no meio de grandes erros ligados mais à História do que às histórias?

Em posfácio a uma edição revista, Kundera conta que A Brincadeira foi um sucesso na Checoslováquia, vendeu 120 mil exemplares, recebeu óptimas críticas, mas que, quando os russos invadiram o país, o romance foi retirado das livrarias, uma vez que os comunistas verdadeiros se portaram como os comunistas ficcionais. Os episódios inesperados continuaram: por intermédio de Aragon, o livro saiu na Gallimard e teve bom acolhimento. A ironia está no facto de Aragon ser um comunista ortodoxo. E faltava uma última peripécia: à época, Kundera não dominava o francês, por isso não se apercebeu de que a tradução era muito má, arruinando o seu estilo legível com uma prosa barroca. Descobriu depois, e os biógrafos confirmam, que o tradutor era um agente checo que quis sabotar o romance. Essa brincadeira também acabou mal.
 
Pedro Mexia. E-Revista, Semanário Expresso, 17 de julho de 2025 

 

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