sexta-feira, 18 de abril de 2025

Mitologia | Ceíce e Alcíone

 





Ceice era rei da Tessália, onde reinava em paz, sem cometer violência ou injustiça. Era filho de Vésper, a Estrela-d'Alva, e o esplendor de sua beleza lembrava a do pai. Alcíone, filha de Éolo, era sua esposa, amante e dedicada. Ora, Ceice sentia-se profundamente aflito pela morte do irmão, e os horríveis prodígios que se seguiram a essa morte davam-lhe a impressão de que os deuses lhe eram hostis. Resolveu, portanto, fazer uma viagem a Carlos, na Jónia, a fim de consultar o oráculo de Apolo. Porém, logo que revelou a sua intenção à esposa, Alcíone, esta estremeceu e tornou-se mortalmente pálida. 

— Que culpa minha, querido marido, afastou de mim o teu afeto? — perguntou ela.

— Onde está aquele amor que dominava todos os nossos pensamentos? Aprendeste a sentires-te bem, longe de Alcíone? Preferias que eu me afastasse de ti? 

Também tentou desanimá-lo, descrevendo a violência dos ventos, que conhecera muito bem, quando vivia em casa de seu pai, pois Éolo é o rei dos ventos, e fez todo o possível para dissuadi-lo. 

— Eles correm juntos — disse — com tanta fúria que o fogo irrompe do conflito. Mas se vais, querido marido, deixa-me ir contigo, de outro modo sofrerei não apenas os males verdadeiros que encontrares como também aqueles que meu temor sugerir. 

Estas palavras afetaram profundamente o espírito do Rei Ceice, que não desejava menos que a esposa, levá-la consigo, mas não podia expô-la aos perigos do mar. Respondeu, portanto, consolando-a como podia, e terminou com estas palavras: 
 
— Prometo pelos raios de meu pai, a Estrela-d'Alva, que, se o destino permitir, voltarei antes de a Lua ter girado duas vezes sobre a sua órbita. 
 
Tendo assim falado, ordenou que o navio fosse tirado do estaleiro e os remos e velas colocados a bordo. Ao ver esses preparativos, Alcíone tremeu, como se tivesse pressentimento do mal. Com lágrimas e soluços, disse adeus ao marido e caiu sem sentidos no solo. Ceice, por seu gosto, teria retardado a partida, mas os jovens marinheiros tinham tomado os remos e avançavam vigorosamente entre as ondas, com pancadas longas e cadenciadas. Alcíone ergueu os olhos lacrimosos e viu o marido de pé no convés, acenando-lhe. Respondeu ao aceno, até que o navio se afastou tanto que ela já não podia distinguir o vulto de Ceice dos demais. Quando o próprio navio já não pôde ser visto, a jovem rainha aplicou os olhos para avistar as velas num último relance até que estas também desapareceram. Retirou-se, então, para o seu quarto e lançou-se ao leito solitário. 

Enquanto isso, os navegantes saíam do porto e a brisa brincava no cordame. Os marinheiros manejavam os remos e alçaram as velas. Quando mais ou menos metade do trajeto fora feito, o mar começou a embranquecer com ondas e o vento leste a soprar como um furacão. O mestre ordenou que se recolhessem as velas, mas a tempestade impediu que a ordem fosse cumprida, pois os gritos de comando não eram ouvidos entre o ruído dos ventos e das ondas. Os marinheiros, espontaneamente, tratavam de recolher os remos e rizar as velas. Enquanto assim fazem o que a cada um parece o melhor, a tempestade aumenta. Os gritos dos homens, o rangido das enxárcias e o batido das vagas misturam-se com o estrondo do trovão. O mar furioso parece levantar-se até ao céu, para espalhar entre as nuvens a sua espuma, depois, baixando até o fundo, tomar a cor do carvão: um negrume do Estige. 
 
O navio acompanha todas essas mudanças. Parece um animal selvagem que corre sob as lanças dos caçadores. A chuva cai em torrentes, como se o céu estivesse a cair para se unir com o mar. Quando os raios cessam, por um momento, a noite parece juntar a sua própria escuridão à da tempestade; em seguida vem o relâmpago, afastando as trevas e tudo iluminando com seu clarão. A habilidade falha, a coragem desaparece e a morte parece vir em cada vaga. Os homens ficam estupidificados de terror. Vêm-lhes à lembrança os pais e filhos, os parentes deixados em casa. Ceice pensa em Alcíone. Apenas o seu nome está em seus lábios e, ao mesmo tempo que anseia por vê-la, regozija-se com a sua ausência. De súbito, o mastro é despedaçado por um raio, o leme quebra-se e a onda triunfante varre o tombadilho e sai em seguida, levando os destroços. Alguns dos marinheiros, petrificados pelo choque, afundam-se na água e não mais se erguem; outros agarram-se aos restos do naufrágio. Ceice, com a mão que costumava segurar o cetro, agarra-se a uma tábua, gritando por socorro — em vão, por desgraça — ao seu pai e ao seu sogro. O nome de Alcíone, porém, era o que mais vezes vinha aos seus lábios. Para ela voltam-se os seus pensamentos. Pede que as ondas possam levar seu corpo até Alcíone e que seus funerais por ela sejam feitos. Finalmente, as águas cobriram-no e ele afunda-se. A Estrela-d'Alva mostrou-se sombria naquela noite. Como não podia deixar o céu, escondeu nas nuvens a face.

Enquanto isso, Alcíone, ignorando todos esses horrores, conta os dias para o prometido regresso do marido. Ora prepara as vestes que ele envergará, ora as que ela própria usará quando ele regressar. Oferece, frequentemente, incenso a todos os deuses, porém mais do que todos a Juno. Reza, incessantemente, pelo marido que já não vive: que ele esteja salvo; que regresse ao lar; que não veja, em sua ausência, outra mulher que possa amar mais que a ela própria. De todas essas súplicas, porém, a última era a única destinada a ser atendida. A deusa, afinal, não mais suportando ouvir preces por alguém que era morto e ver estendidos em seus altares os braços que deveriam erguer-se nos ritos funerários, chamou Íris, ordenando: 
 
— Íris, minha fiel mensageira, vai à casa letárgica do Sono e dize-lhe para enviar uma visão a Alcíone, sob a forma de Ceice, a fim de que ela saiba o que aconteceu.
 
Íris envergou suas vestes de muitas cores e tingindo o espaço com o seu arco, procurou o palácio do Rei do Sono. Perto da região cimeriana, numa caverna da montanha, fica a morada daquele deus sonolento. Ali Febo não ousa entrar, nem ao levantar-se, nem ao meio-dia, nem quando se recolhe. Nuvens e sombras erguem-se do chão e a luz brilha fracamente. 
 
A ave da alvorada, de vermelha crista, jamais ali chama, em voz alta, Aurora, nem o vigilante cão ou o solerte ganso perturbam o silêncio. Nem animal selvagem, nem o gado, nem um ramo movido pelo vento, nem o ruído da conversa humana afetam a quietude. O silêncio ali reina; do fundo do rochedo, contudo, corre o Rio Letes, e seu murmúrio convida ao sono. 
 
Junto à entrada da caverna, crescem abundantemente papoulas e outras plantas, de cujo suco a Noite extrai o sono, que espalha sobre a terra escurecida. Não há na mansão porta que gema nos gonzos, nem qualquer vigia; mas, no centro, um leito de negro ébano, adornado com plumas e cortinas negras. Ali o deus se recosta, com os membros relaxados pelo sono. Em torno dele, estão os sonhos, apresentando todos várias formas, tantas quantas hastes têm os trigais, quantas folhas tem a floresta, ou quantos grãos de areia têm as praias. Logo que a deusa entrou e afastou os sonhos que se reuniam em torno dela, o seu clarão iluminou a caverna. O deus, mal abrindo os olhos, e de vez em quando cabeceando e fazendo cair a comprida barba sobre o peito, afinal despertou e estendendo o braço indagou a que vinha Íris, pois conhecia-a.

— Sono — disse ela —, tu o mais gentil dos deuses, que tranquilizas os espíritos e curas os corações amargurados, Juno ordena-te que envies um sonho a Alcíone, na cidade de Traquine, representando seu finado marido e todos os acontecimentos do naufrágio. 
 
Tendo transmitido o recado, Íris apressou-se em sair, pois não podia tolerar o ar estagnado, e, sentindo a sonolência que a tomava, voltou, através de seu arco, ao caminho que trilhara antes. Então, Sono chamou um de seus inúmeros filhos, Morfeu, o mais hábil em simular formas e em imitar o andar, a fisionomia e a maneira de falar, mesmo os vestuários e os modos mais característicos de cada um. Ele, porém, apenas imitava os homens, deixando ao encargo de outro imitar aves, quadrúpedes e serpentes. Este era chamado Icelo; e um terceiro, Fantasos, muda -se em rochedos, águas, bosques e outras coisas sem vida. Os dois servem a reis e grandes personagens, em suas horas de sono, ao passo que outros se movem entre a gente comum. De todos os irmãos, Sono escolheu Morfeu para executar a ordem de Íris. Depois, encostou a cabeça no travesseiro e entregou-se ao grato repouso.
 
Morfeu voou, sem fazer o menor ruído com as asas, e logo chegou à cidade hemoniana, onde, deixando de lado as asas, assumiu a forma de Ceix. Sob esse aspecto, mas pálido como um defunto, e nu, colocou-se em frente ao leito da desventurada esposa. Sua barba parecia encharcada e a água lhe escorria pelos cabelos. Debruçando-se sobre o leito, com lágrimas descendo dos olhos, disse: 
 
— Reconheces Ceice, desventurada esposa, ou a morte modificou em demasia as minhas feições? Olha-me, vê-me, a sombra de teu marido, e não ele próprio. Tuas preces, Alcíone, de nada me valeram. Estou morto. Não te iludas mais com vãs esperanças de meu regresso. Os ventos tempestuosos afundaram o meu navio no Mar Egeu, a água penetrou em minha boca enquanto eu dizia, em voz alta, o teu nome. Não é um mensageiro incerto que te conta isto, não é um vago rumor que chega aos teus ouvidos. Venho em pessoa, eu um náufrago, contar-te meu destino. Levanta-te! Dá-me lágrimas, dá-me lamentos, não me deixes descer ao Tártaro sem ser chorado. 
 
A estas palavras Morfeu ajuntou a voz que parecia ser a do marido de Alcíone; vertia lágrimas iguais às de verdade, e suas mãos copiavam os gestos de Ceice. Alcíone, chorando, gemeu e estendeu os braços, ainda dormindo, procurando abraçar o corpo, mas encontrando apenas o ar. 
 
— Fica! — exclamou. Por que foges? Partamos os dois juntos!

A sua própria voz despertou-a. Assustada, olhou em torno, para ver se o marido ainda estava presente, pois os criados, alarmados pelos seus gritos, haviam acorrido, trazendo uma luz. Não encontrando o marido, Alcíone esmurrou o peito e rasgou as vestes. Não se preocupou em desatar os cabelos, mas arrancou-os, selvaticamente. A sua ama indaga qual a causa de seu sofrimento. 
 
— Alcíone já não existe — responde. — Pereceu com seu Ceice. Não digas palavras de consolo, ele naufragou e está morto. Eu o vi, reconheci-o. Estendi os braços para retê-lo. Sua sombra esvaneceu-se, mas era a verdadeira sombra de meu marido. Não com as feições costumeiras, não com a sua beleza, mas pálido, nu e os cabelos molhados pela água do mar, para fazer-me sofrer. Aqui, neste mesmo lugar, esteve a triste visão. — E Alcíone olhou, procurando as suas pegadas. — Era isto, era isto que meu espírito previa, quando lhe implorei que não me deixasse, que não se confiasse às águas. Oh, quanto desejaria, uma vez que foste, que me tivesses levado contigo! Quanto melhor teria sido! Não teria, então, um resto de vida para passar sem ti, nem de morrer uma morte separada. Se eu pudesse suportar a vida e lutar para a tolerar, seria mais cruel para comigo mesma do que o mar tem sido. Mas não lutarei, não me separarei de ti, desventurado marido. Desta vez, pelo menos, far-te-ei companhia. Na morte, se um só túmulo não pode conter-nos, um só epitáfio conterá; se não posso misturar as minhas cinzas com as tuas, o meu nome, pelo menos, não será separado do teu. 
 
O sofrimento impediu-a de dizer outras palavras, e as que dizia foram interrompidas por lágrimas e soluços. 
 
Já era manhã. Alcíone dirigiu-se à praia e procurou o lugar onde vira o marido pela última vez, por ocasião da sua partida. 
 
— Enquanto ajustava os apetrechos do navio, ele deu-me aqui o último beijo.
 
Revendo cada objeto, ela esforça-se para relembrar todos os incidentes, contemplando o mar, e avista, então, um objeto indistinto, flutuando na água. A princípio, duvidou do que fosse, mas, pouco a pouco, as águas foram-no trazendo mais para perto, e não havia dúvida de que era o corpo de um homem. Embora sem saber de quem se tratava, como era o corpo de um náufrago, Alcíone ficou profundamente comovida e derramou lágrimas copiosas, exclamando: 
 
— Ah, desventurado e desventurada esposa, se tens esposa!

Empurrado pelas águas, o corpo aproximou-se. E, ao vê-lo aproximar-se, Alcíone tremia cada vez mais. Agora, aproxima-se mais da praia. Aparecem, agora, sinais que ela reconhece. E o marido... Estendendo para o corpo os trémulos braços, ela exclama: 
 
— Oh, adorado marido, é assim que voltas para junto de mim? Partindo da praia, fora construído um molhe, destinado a conter a fúria do mar. 
 
Alcíone salta sobre esta barreira e (coisa maravilhosa que o pudesse fazer) voa e, cortando o ar com asas que tinham surgido naquele instante, aflorou a superfície da água, transformada numa ave desventurada. Enquanto voava, saíam-lhe da garganta sons dolorosos, semelhantes à voz de alguém que se lamenta. Ao tocar o corpo mudo e sem sangue com as asas recém-formadas, tentou beijá-lo, com o seu bico ósseo. Se Ceice sentira o contacto, ou se foi simplesmente ação das ondas, aqueles que contemplavam a cena não souberam dizer, mas o cadáver pareceu levantar a cabeça. Na verdade, porém, ele sentiu e, pela benevolência dos deuses ambos os esposos foram transformados em aves. Acasalaram-se e reproduziram-se. Durante sete plácidos dias, no inverno, Alcíone choca os ovos no ninho, que flutua no mar. Então, as rotas são seguras para os marinheiros. Éolo impede que os ventos sacudam as profundezas das águas. O mar fica entregue, durante esse tempo, aos seus netos. 
 
Thomas Bulfinch. O livro de ouro da mitologia. Rio de Janeiro: Edidouro Publicações, 2002, pp. 86-93

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