terça-feira, 25 de junho de 2024

Sobre o futebol e a Europa— alguns tópicos

 

 


Estádio, Futebol, Território, Roma



Imaginar uma seleção europeia de futebol que pudesse jogar contra as seleções dos outros continentes. Finalmente, aí, os europeus aprenderiam o hino comum

Agora é que a verdadeira Europa emocional começa, diz alguém, enquanto liga o ecrã para ver o jogo de abertura do Europeu de futebol.

 

1.

Som — ver um jogo de futebol sem som é perder metade da sua potência. O som do próprio ambiente do estádio ou o do relato é a banda sonora do jogo. Poderia quase ser vendida à parte como se faz com as bandas sonoras dos filmes.

E sim, como com qualquer filme, se tirarmos a banda sonora, tiramos parte da emoção. Já milhares de vezes se falou do som que acompanha a cena do chuveiro em “Psico” de Hitchcock. Outra música mudaria o tom da cena.

Curiosa, esta questão da emoção ligada ao ouvido. Seria interessante perceber se a emoção do jogo se perde mais com a ausência de som ou com a ausência de imagem (como nos relatos na rádio).

Eu arriscaria: o relato de um jogo na rádio emociona mais os músculos cardíacos de um adepto do que ver o jogo sem qualquer som.

Com a música já o tínhamos percebido, com o futebol também fica claro: o nosso aparelho auditivo deve ter a ligação mais direta e mais rápida ao sistema emocional.


2.

Nervosismo — a ansiedade de um jogador antes de marcar uma grande penalidade. É um jogo de zero e um. Mas não da mesma maneira para guarda-redes e marcador da grande penalidade. Não defender não é um falhanço, não marcar é um falhanço. Para o guarda-redes há o balanço entre uma perda previsível e a possibilidade de ser um herói. Para o marcador da grande penalidade, há o balanço entre ser competente — marcar, ou seja, fazer o que estava previsto, quase como um funcionário que cumpre as suas obrigações com a eficácia — e ser muitíssimo incompetente, falhando aquilo que na maioria das vezes se consegue.

O que cria maior ansiedade? A possibilidade da grande falha. É um duelo, sim, mas emocionalmente não é equilibrado.


3.

 Improviso e monotonia — todo o improviso é no jogo uma forma de arte e na arte uma forma de jogo. Não se trata de uma surpresa, mas de algo que soluciona um problema de uma maneira insólita. Há jogadores-jazz e jogadas-jazz. Há equipas-jazz. E há, depois, por vezes, a monotonia e a previsibilidade absoluta. Um jogo monótono, por definição, não é jogo.


4.

Longevidade — neste Europeu de futebol, no mesmo campo pode estar um jogador com 17 anos e outro com 39. Vinte e dois anos de diferença. Qual seria o jogo ideal em termos etários? Aquele que, no limite, pudesse juntar três ou mesmo quatro gerações no mesmo espaço. Há jogos populares onde isso acontece: um menino de seis, o pai, a avó e o bisavô a jogarem o mesmo jogo tradicional. A vida, entretanto, é o outro jogo, bem sério, em que várias gerações estão ao mesmo tempo no mesmo campo.


5.

Portugal, Europa, hino e bandeira — tirando datas festivas, bem específicas, os cidadãos de um país em paz só cantam o hino aquando de competições desportivas (jogos de futebol, vitórias olímpicas, etc.). Há, provavelmente, pessoas que só cantaram o hino antes de certos jogos de futebol da seleção do seu país. Sem o futebol, o hino talvez fosse uma música, não um símbolo.

Agora que se fala tanto da importância de um sentimento comum europeu, seria interessante imaginar uma seleção europeia de futebol que pudesse jogar contra as seleções dos outros continentes. Provavelmente, quem sabe, finalmente aí, os europeus aprenderiam o hino comum e colocariam a mão no peito em homenagem à bandeira e ao hino europeus. E vibrariam com as vitórias da equipa da Europa e sofreriam com as suas perdas.

É curioso, penso agora: temos uma palavra para amor à pátria — patriotismo — mas não temos uma palavra para amor ao continente — seria algo como “continentismo”.

Que não seja necessária uma guerra para se aprender o hino europeu, costuma dizer Jonathan, um amigo.


6.

Mas esse amigo disse-me ainda: talvez a grande divisão entre países não seja continental, mas sim política. Democracias e não democracias. E, talvez por isso, mais importante do que criar uma equipa de futebol europeia seria criar uma equipa de futebol que representasse a democracia, com um hino próprio e uma bandeira.

Que a equipa de futebol da democracia não tivesse adversário, eis uma verdadeira utopia lúdico-política, disse-me Jonathan.


7.

Quantos europeus votaram para as eleições europeias e quantos europeus irão ver jogos deste torneio? Sim, certas sondagens, apesar de estapafúrdias, deveriam ser feitas. Isso não tem importância, dirão uns; isso é muito relevante, defenderão outros. O jogo é mesmo uma coisa séria.

Gonçalo M. Tavares. Revista E - Semanário Expresso, 21 de junho de 2024


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