domingo, 9 de junho de 2024

Portugal cabe todo n’ Os Lusíadas”: viagem aos mundos do épico de Camões

 

 

 


 

 
 
 

Rios e serras, cidades e ambição, heróis e conquistas. O poema maior da literatura portuguesa guarda em si um país inteiro. A obra de Camões acentua a força da identidade coletiva e em tempo de perplexidade e de angústia reforça a autonomia política de Portugal na Europa.


Encontramos nas páginas da sua obra maior tudo o que Luís de Camões definiu para caracterizar Portugal e o temperamento e o carácter dos portugueses. Os limites das fronteiras, o espaço da raia, o curso dos rios, o relevo das serras, a amplitude dos vales e a extensão da planície. Mas o que deslumbra Camões — em todos os continentes onde se radicou — é, sempre, o mar. As vagas encrespadas, as ondas tranquilas, os horizontes visíveis e enigmáticos, as manhãs luminosas, os crepúsculos lentos. As noites cerradas. As noites repletas de estrelas.

Em cada estrofe d’ “Os Lusíadas” e, muitas vezes, num simples verso, através da agudeza do olhar, da sabedoria de ouvir e do cuidado de escutar, Camões revela–nos a singularidade da paisagem, feita de contrastes, ou associada a acontecimentos políticos, militares, culturais e sociais. Enaltece a determinação, o arrojo e a coragem dos portugueses: “em perigos e guerras esforçados,/ mais do que prometia a força humana” (Canto I, estrofe 1). Na cerimónia da apresentação d’ “Os Lusíadas” ao rei salientou, e “com um saber de experiência feito”, que “a disciplina militar prestante/ não se aprende, Senhor, na fantasia/ sonhando, imaginando, ou estudando/ senão vendo, tratando e pelejando” (X, 153).

Álvaro Seco, que nasceu e viveu no século XVI, embora mais velho do que Camões, o autor do primeiro mapa de Portugal, pormenorizou o registo do litoral e do interior, tal como se concebia, na época. Luís de Camões resumiu: “eis aqui, quase cume da cabeça/ da Europa toda, o Reino Lusitano,/ onde a terra se acaba e o mar começa” (III, 20). É com o maior orgulho que Camões se identifica: “Esta é a ditosa Pátria minha amada” (III, 20, 21).

Inscreveu o rio Minho, que principia nos montes Cantábricos, separa Portugal da Galiza e desagua junto de Caminha. Recorda Camões: (...) “Ó gente que a natura/ vizinha fez do meu paterno ninho,/ que destino tão grande ou que ventura/ vos trouxera cometerdes tal caminho? Não é sem causa, não, oculta e escura, vir do longínquo Tejo e ignoto Minho,/ por mares nunca de outro lenho arados, a reinos tão remotos e apartados” (VII, 30, 6). É o Minho no seu aconchego repleto de vinhedos nas encostas, o casario branco com o jardim e as hortas, os moinhos, os açudes, o estremecer contínuo das espumas brancas.

Todo este envolvimento geográfico ganha ainda mais autenticidade ao ser completado por Orlando Ribeiro, geógrafo. “O pescador tradicional, sempre enroupado e taciturno, conhecedor dos segredos da costa, dos ventos, dos fundos marinhos, embarcado ou, em terra, remendando as redes, preparando a isca, cozinhando peixe, ou dormindo à sombra do seu barco, sem gosto, nem jeito do trabalho do campo, forma, com a família, agrupamentos distintos da população rural”, escreve Ribeiro em “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico”, de 1945.

A outra fronteira fica marcada pelo Guadiana, o rio que nasce nas lagoas de Ruidera e demarca Portugal da Andaluzia espanhola. Entra pelo Alentejo por Mértola, segue para o Algarve através de Castro Marim e termina próximo de Vila Real de Santo António. Estabelece a transição do Atlântico para o Mediterrâneo. O Algarve insere-se numa continuidade de praias, até Sagres que nos ensinou a ver e a olhar mais longe.

Ou distribuiu–se no barrocal e na serra, conforme escreveu Teixeira Gomes. “O ar impregnado pelas exalações resinosas das estevas; o pesado quase palpável perfume das moitas de rosmaninho; os gorgeios que a passarinhada solta como isolados fios de pérolas cristalinas; o ruído, o remurmúrio de colmeia de que a vida dos insetos repassa o mato espesso; as borboletas ardendo na luz intensa, como pequeninas chamas verdes que se perseguem, e caindo nas sombras com a opacidade das flores de enxofre” (...) “A norte, a perspetiva circular das serras que fecham o Algarve, imponentes e, até inoportunas, quase, nas altíssimas ondulações da Foia e da Picota, mas morrendo em linhas azuladas, como que esvaídas, direito ao mar e acamando a levante, em aveludadas ondas de musselina”, lê-se em “Gente Singular”, de 1909.


Camões evidencia a importância da primeira capital do reino em Guimarães. O conde D. Henrique ali assentou a corte. “De Guimarães o campo se tingia co’o sangue próprio da intestina guerra” (III, 31). Por direito de herança, coube a seu filho D. Afonso Henriques (c. 1109-1185) constituir um pequeno reino que foi crescendo e evoluindo mediante a força das armas, os entendimentos com as dioceses e com o próprio Papa: “Não passa muito tempo, quando o forte/ Príncipe em Guimarães está cercado/ de infinito poder...” (III, 35).

De terra em terra, Lisboa deixa de estar na posse dos árabes. Foi elevada em 1147 a capital do reino... “e tu, nobre Lisboa, que no mundo/ facilmente das outras és princesa” (III, 57, 1 e 2). “Que cidade tão forte porventura/ Haverá que resista, se Lisboa/ Não pode resistir à força dura/ da gente, cuja fama tanto voa?/ Já lhe obedece toda a Estremadura/ Óbidos, Alenquer (por onde soa/ O tom das frescas águas entre as pedras/ que, murmurando, lava) e Torres Vedras” (III, 61). É uma exortação que não cessa: “Tu claro Tejo, regas tão sereno./ A estas nobre vilas submetidas/ ajunta também Mafra, em pouco espaço/ e, nas serras da Lua conhecidas,/ subjuga a fria Sintra o duro braço” (III, 55 e 56). O Tejo, o maior de todos os rios da Península Ibérica, originário de Albarracín, em Espanha, corre em Castela a Nova, Toledo, até que entra em Portugal e oferece-nos o grande e diversificado cenário de Lisboa.

O homem português nunca conseguiu ocultar o estigma indisfarçável, a “inveja”. Não foi por acaso que Luís de Camões n’ “Os Lusíadas” terminou o último verso com esta palavra.

Portugal adquirira um estatuto político e social que reclamava um centro de cultura e de ensino. Assim, D. Dinis (1261-1325) fundou, em 1290, no bairro de Alfama o Estudo Geral, adotando os modelos em vigor em Paris, Bolonha, Montpellier, Pádua e outras cidades da Europa. Todavia, em 1308, o Estudo Geral foi transferido para Coimbra. Havia maior sossego para a aplicação dos alunos e a fixação dos professores. Voltou a Lisboa e regressou a Coimbra. Passou a ser a única universidade portuguesa, até que, em 1911, o Governo da República Portuguesa instituiu também as universidades de Lisboa e do Porto.

A crise de 1383-1385 provocou uma série de lutas para impedir as ameaças que afetavam a independência nacional. Mais uma vez, a Espanha pretendia apoderar-se de Portugal. As culpas são denunciadas por Camões: “Remisso, e sem cuidado algum, Fernando,/ que todo o Reino, pôs em muito aperto; que vindo o Castelhano devastando/ as terras sem defesa, esteve perto/ de destruir-se o reino totalmente/ Que um fraco Rei fez fraca a forte gente” (III, 138).

Em face do alastrar do conflito, Nuno Álvares Pereira, o Condestável, vai assumir um papel fundamental: “a gente força e esforça Nuno (...) removem o temor frio, importuno,/ que gelados tinha os corações” (IV, 21). As opiniões dividiram–se: “das gentes populares, uns aprovam/ a guerra com que a pátria se sustinha;/ uns as armas alimpam e renovam,/ que a ferrugem da paz gastadas tinha” (IV 2). Mal se ouviu o “sinal da trombeta castelhana”, “horrendo, frio, ingente e temeroso” (IV, 28) desencadeara-se a “incerta guerra”.

A batalha de Aljubarrota decidiu, com prodígios de valentia, transpor adversidades e alterar os rumos da história: “Pelo espesso ar os estridentes/ farpões, e vários tiros voam;/ debaixo dos pés duros dos ardentes/ cavalos treme a terra, os vales soam./ Espedaçam-se as lanças, e as frequentes/ quedas co’as duras armas tudo atroam.”

Portugal não se contenta com os limites geográficos, sempre condicionados pela hostilidade das Espanhas. Prosseguiu, em 1415, na conquista de Ceuta, para exterminar a vizinhança dos mouros do Norte de África. Empenha-se nesta cruzada com ardor o rei D. João I, juntamente com seus filhos, o infante D. Henrique, o infante D. Pedro e o infante D. Fernando. O combate será renhido: “Aqui a fera batalha/ com mortos se encruece/ com mortos, gritos, sangue e cutiladas/ a multidão de gente que perece” (...) “já falece/ o furor e sobejam as lançadas;/ Já de Castela o Rei desbaratado/ se vê, e de seu propósito mudado” (IV, 42).
 

A EXPANSÃO MARÍTIMA


O Infante D. Henrique (1394-1460), que muitos historiadores e camonianistas consideram não ter merecido n’ “Os Lusíadas” o devido apreço, é o quinto filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre: “ramo claro/ Do venturoso Rei que arou primeiro/ O mar...” (VIII, 71). D. Henrique impulsionou a descoberta de novas ilhas, a Madeira e os Açores, desenvolveu as navegações a um ritmo crescente. A passagem do Cabo Bojador por Gil Eanes, em 1434, representa um processo irreversível. Depois do falecimento, em 1460, do Infante D. Henrique, o esforço será continuado pelo rei D. João II (1455-1495) e, finalmente, pelo rei D. Manuel (1469-1521) com a chegada, em 1498, da esquadra de Vasco da Gama à Índia.

Camões, logo no início d’ “Os Lusíadas”, atribuiu este acontecimento ao esforço, à energia do povo português. Exalta, em primeiro lugar, “o peito ilustre lusitano/ a quem Neptuno e Marte obedeceram”. É certo que também louva Vasco da Gama, capitão-mor da armada que na realização da viagem suplantou os vultos mais representativos da Antiguidade Clássica. Assim, Vasco da Gama aparece sob a designação de Gama (em 39 ocorrências), acompanhada de adjetivos elucidativos das qualidades exigidas a um chefe no século XVI, como, por exemplo, ilustre, nobre, forte, sublime. Também é identificado 44 vezes como o capitão do grande feito que marcou a história da expansão portuguesa.

Apesar dos elogios explícitos e implícitos a Vasco da Gama, Camões privilegiou n’ “Os Lusíadas” a personalidade e a obra de Duarte Pacheco Pereira, o celebrado autor do “Esmeraldo de Situ Orbis” e que D. João II incluiu no grupo que negociou o Tratado de Tordesilhas e pertenceu à armada de Pedro Álvares Cabral que, em 1500, desembarcou no Brasil (pág. 295). Duarte Pacheco Pereira é talvez a figura mais elogiada por Camões. “Os Lusíadas” na adjetivação contida em vários passos destacam o “fortíssimo” (I, 14:5), o “grão Pacheco”. “Aquiles Lusitano” (X, 12:4), “invicto e forte Luso” (X, 18:2) (pág. 294). Louvou, ainda, o capitão-mor do mar, em defesa do rei amigo de Cochim, em 1504 (X, 15:2, 16:6, 17:6 e 19:5-7).

A notável ação militar e a não menos notável estatura científica e intelectual de Duarte Pacheco Pereira não impediram, contudo, que viesse a ser preso por ordem de D. João III, quando exercia o cargo de capitão de S. Jorge da Mina (atual Elmina, no Gana). Em circunstâncias deploráveis, morreu num hospital de Lisboa. Antevendo o seu próprio futuro, Camões denuncia a ingratidão real que abandona à miséria e à desgraça os seus filhos mais ilustres: “Morrer nos hospitais, em pobres leitos,/ os que ao Rei e à lei servem de muro!/ Isso fazem os reis cuja Vontade/ manda mais que a justiça e a verdade” (X, 23).





O ORGULHO DE SER PORTUGUÊS


Ao chegar ao Oriente, Vasco da Gama, ao responder ao rei de Melinde, relata também com orgulho a memória das origens de Portugal e dos portugueses: “mandas-me, ó Rei, que conte declarando/ de minha gente a grão genealogia;/ não me mandas contar estranha história,/ mas mandas-me louvar dos meus a glória” (III, 3). Menciona qualidades e não oculta defeitos. Sentimentos nobres como a generosidade, a coragem e a honra. Defeitos lamentáveis como o suborno, a corrupção e a inveja. Incentiva D. Sebastião a defender Portugal entre os povos europeus: “fazei, Senhor, que nunca os admirados/ alemães, galos, ítalos e ingleses,/ possam dizer que são pera mandados,/ mais que para mandar, os Portugueses” (X, 152).

O homem português, através dos séculos, não conseguiu ocultar o estigma indisfarçável, a “inveja”. Não foi por acaso, por liberdade poética, por exigência de métrica ou necessidade de rima que Luís de Camões n’ “Os Lusíadas” terminou o último verso com esta palavra. “ Ou fazendo que, mais que a de Medusa,/ A vista vossa tema o monte Atlante,/ Ou rompendo nos campos de Ampelusa/ Os muros de Marrocos e Trudante,/ A minha já estimada e leda Musa / Fico que em todo o mundo de vós cante,/ De sorte que Alexandro em vós se veja,/ Sem à dita de Aquiles ter enveja.”

Onde quer que seja, as pessoas com quem nos cruzamos, no dia a dia, resmungam, conspiram, sofrem e insurgem-se, ao verificarem que o semelhante é bafejado pela fortuna. Pouco lhes importa se estão acabrunhados, falidos, doentes com a família na maior das desgraças e misérias, mas o que não suportam é o bem dos outros.

Camões conforma-se com as fatalidades que lhe acontecem e se multiplicam, mas quando menos se espera manifesta expressões de escárnio e maldizer. Henrich Schaefer, importante lusitanista do século XIX e que teve honras de tradução de Sampaio Bruno, recorreu a testemunhos autorizados tais como Conestággio (1530-1611), diplomata, oriundo de Génova, que desempenhou funções em Lisboa e escreveu um livro acerca da sua permanência entre nós: “Dell’ Unione del Regno di Portogallo allo corona di Castiglia”. É bastante objetivo ao relatar o quadro social dos usos e costumes, em especial o comportamento da nobreza e dos quadros dirigentes que flutuam dentro ou nos bastidores da hierarquia do Estado.

Conestággio denuncia, entretanto, o visível sentimento da inveja que, entre portugueses, assumiu nas altas esferas características muito peculiares que voltaram a confirmar-se nas mais variadas conjunturas. Os portugueses — acentua Conestággio — invejosos por índole, sentem com maior desgosto o proveito alheio do que o próprio dano.

Pôs o dedo na ferida. Nada mais correto. Ainda hoje podemos citar numerosos exemplos. Sobretudo, com os equívocos e as certezas que temos assistido com vergonha. Sejamos claros: uma coisa são as elites, a classe política, o grande poder económico e a grande finança; outra o povo, a arraia-miú­da de que falava já Fernão Lopes e que, em muitas outras conjunturas até aos nossos dias, não se refugia em silêncios cúmplices, ambiguidades artificiosas, hipocrisias politicamente corretas. Manifesta-se com frontalidade para enfrentar, cara a cara e olhos nos olhos, a hostilidade e a cobardia de muitos dos seus contemporâneos.

Os valores cívicos e culturais destacados por Camões acentuam a força da identidade coletiva e, num tempo de crise, de perplexidade e de angústia, reforçam a autonomia política de Portugal na Europa.

Revista E - Semanário Expresso, 7 de junho de 2024


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