quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O tempo em que os animais falavam


 

 

 Ai Gerado, Border Collie, Cachorro


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PARA AS MAMÃS E PAPÁS DOS PATUDINHOS, NÃO CHEGAM OLHARES TERNOS OU CAUDAS A ABANAR. NÃO. OS CÃES TÊM MESMO DE DIZER “I LOVE YOU”

 

P

or cá, ligámos apenas com um carinho nacionalista para aquela história do “‘Bobi’, o cão mais velho do mundo”. Era português e morreu. Orgulho. Descanse em paz. Entrou no “Guinness World of Records” e não se fala mais do assunto. Mas o tema, ao contrário do idoso canídeo, recusa-se a fenecer em alguma imprensa internacional, convencida de que o ‘nosso’ “Bobi” é uma fraude e que é impossível que um cão, ou pelo menos aquele, ter vivido 31 anos — o equivalente a 217 em “anos humanos”. A revista “Wired”, de tecnologia, quase dois meses após a partida de “Bobi”, agora em dezembro, continuava a questionar tudo: se o cão que se via nas fotos de 1992 era o mesmo, se o pelo avermelhado podia mudar para acastanhado, e alertava para que não havia papéis de registo e que só em 2020 é que começou a ser obrigatória por cá essa documentação. Chamou académicos peritos em longevidade canina — que disseram que no mundo rural europeu é possível encontrar vários cães com 40 anos, porque um vai substituindo o outro na função, herdando o nome. Onde os cães vivem mais é no Japão, e até agora só um chegou à provecta idade de 25. Os defensores do “Bobi” dizem que isto é um ataque ao facto de terem dito que comia restos e não patês de marca e das indústrias de comida para cães. Ao que respondem que não, que o facto de ele estar tão gordo era um sintoma de pouca saúde — e isso ainda os faz desconfiar mais. Estão investidos muitos milhões de dólares para desenvolver medicamentos para aumentar a expectativa de vida dos gatos e cães. Uma indústria milionária. Mas o “Bobi” foi cremado. E a ciência não pôde aprender nada com ele. Caso tivesse mesmo 31 anos. O “Guiness” investiga.

As redes sociais, e ultimamente o Instagram e o TikTok, vieram alterar ainda mais a nossa relação com os animais. Como agentes de afeto, os pequenos filmes são perfeitos para emocionar: um resgate no limite, um cão à beira da morte e que encontra um lar, um gatinho que sobe as pernas de um camionista. E depois, vem logo outro ainda mais comovente. Claro que, ligado à “fraqueza emocional”, surgem campanhas fraudulentas de angariação de fundos. Por cá, ainda não vi nada disso. Mas a “animalização” ou “humanização” — não sei que termo escolher — dos filmes com animais deu novo passo. Deparo-me a toda a hora: “um homem encontra uma cria órfã de urso, alimenta-a e devolve-a à natureza, e mais tarde esta reaparece para lhe mostrar os filhotes e, na estrada, faz-lhe adeus”. São milhões de likes. Ninguém quer saber verdadeiramente se aquilo está montado com vários filmes de ursos para criar aquela pequena ficção que “aquece o coração”. A verdade já não interessa. Interessa “provar” que os animais “selvagens”, mesmo perante a maldade dos homens, são capazes de mostrar “gratidão” e “reconhecimento”. Seja um urso ou um tubarão que é desprendido de um anzol. Spoiler: não são.

Gosto mesmo dos meus gatos. Mas não espero deles nada, a não ser que sejam gatos. E esse é o problema que deteto. O amor das pessoas pelos seus animais é tão grande que querem que eles sejam mais do que são. Olhemos para os cães. Dizem que “só falta falarem”. Está resolvido. Durante meses (anos), fui acompanhando no Instagram o lento processo que a terapeuta da fala Christina Hunger iniciou com a sua cadela, “Stella”, no sentido de esta “comunicar” através de botões, que, pressionados, reproduzem palavras. Assim, começou a “dizer” “lá fora” e “agora” quando queria sair. Ou “brincar”. E passou para termos mais complexos, como “zangada” ou o maior desejo dos donos: “love you”. Ah, ter um cão a dizer que nos ama! Este trabalho foi sempre enquadrado com trabalhos académicos, mas resultou num livro para as massas, criou “botões de fala” e gerou o Movimento dos Cães que Falam. Cientistas cognitivos afirmaram ver apenas um cão a pressionar um botão e a obter um resultado. Nada provava “compreensão”. Questionaram se isto não era apenas o famoso “Clever Hans Effect” — uma história centenária em que o cavalo “Hans” não era afinal um às em aritmética, mas brilhante a percecionar as movimentações corporais do dono. Voltemos a 2023, e esta coisa dos botões descontrolou-se. E, de repente, milhares e milhares de cães começaram a falar, ou foram obrigados, se queriam ir à rua fazer a sua mija. Com destaque para um “Bunny”, de uma stay home mummy hiperativa, que já “domina” quase 100 palavras, verbos incluídos, e algo que lhe passou despercebido. Não a mim. O “Bunny” tem consciência do “eu” na construção frásica. Logo, “Bunny” alcançara a certeza cartesiana da sua existência.

Tentar pôr um cão a falar inglês numa interface humana é um absurdo e um desperdício de energia. Pelo simples motivo de que os humanos e os cães já comunicam na perfeição. Estão juntos há 32 mil anos. Para conseguirem a aceitação interespécie, os cães tiveram de aprender a ler, antecipar e compreender a mente do humano muito para lá daquilo que se imagina. As nossas mentes desenvolveram-se em paralelo e em cooperação. Há o caso do border collie que “sabia” 1200 palavras. Não as falava, mas reagia a esses comandos, a esse vocabulário. Era um “cão de trabalho”. E foi dessa forma que foi aprendendo a ligar as palavras a ações. Os cães urbanos são apenas objetos de afeto. Alguém necessita de que um cão pressione um botão para saber que precisa de ir à rua? Ou que quer comer? Ou que fez asneira? Ou que sabe que estamos a fazer bluff? Usando o mesmo tipo de treino que acompanha as tropas especiais em combate, conseguiram fazer com que os cães não se mexam durante as TAC e assim ver as reações ao vivo no seu cérebro. E sim, é “amor” que sente ao ver o dono/a (nos EUA, tem de usar o termo papá/mamã — dono é ofensivo). Mas mal vai isso aí por casa se não sabe que o seu cão gosta de si.

 Luís Pedro Nunes. E-Revista Expresso, Semanário#2669, 22 de dezembro de 2023

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