sábado, 11 de fevereiro de 2023

Pasolini leitor d’Os Lusíadas

 



10/01/1962-Roma, Itália: Observando através das lentes de uma câmara de cinema, o famoso diretor de cinema italiano Pier Paolo Pasolini é visto em plena ação num set em Roma. O diretor estava a trabalhar no seu novo filme “La Ricotta”, com Orson Welles, nos Estados Unidos.



Por Rita Marmoto

Uma considerável parte dos desenhos e do acervo manuscrito e datilografado de Pasolini, objetos pessoais (como a carismática Olivetti Lettera 22), obras de arte e a sua biblioteca encontram-se hoje depositados no Gabinetto G. P. Vieusseux, em Florença. A revelação é um dos livros dessa biblioteca: Camoens, Luigi. I Lusiadi, Traduzione di A. Nervi, Milano, Edoardo Sonzogno Editore 1882 (“Biblioteca universale”, 11-12).

A leitura do poema de Camões, na tradução de Antonio Nervi, remonta à sua adolescência. Ficou tão intensamente gravada na sua memória, que em 1970, no prefácio à antologia de versos intitulada Poesie, recorda: “Aos 13 anos fui poeta épico (da Ilíada aos Lusíadas)”. Poesie é uma antologia pessoalíssima, organizada na última década de vida do malogrado autor. O prefácio autobiográfico que a acompanha capta momentos do seu percurso biográfico aos quais conferiu um valor particular, o que torna a recordação de Os Lusíadas extremamente significativa.

Aos 13 anos, Pier Paolo vivia em Cremona. Passava as tardes nas margens do Rio Pó com o irmão e os amigos. Construíam fortalezas de canas e imaginavam aventuras.

A família Pasolini ia andando de terra em terra, ao ritmo das transferências do pai, oficial do exército. De Cremona, mudou-se depois para Scandiano, para Bolonha e ainda para Parma. Com ela, também a tradução I Lusiadi, de Antonio Nervi, ia andando de casa em casa. Quando a guerra se agudizou, a mãe, com os dois filhos, refugiou-se em Casarsa, no Friuli. O pai, promovido a major, tinha partido para África e viria a ser feito prisioneiro no Quénia. O irmão ir-se-ia juntar a um grupo de partigiani, acabando por ser assassinado numa emboscada organizada pelos eslovenos, que tinham ambições de domínio sobre a zona leste do Friuli.

Em Casarsa, o volume de I Lusiadi passou para as estantes de madeira escura que cobriam as paredes da cozinha. Pier Paolo montara o seu escritório nessa divisão da casa, e quem passava na rua via-o sempre entre os seus livros, sentado à mesa de mármore. Os móveis tinham sido mandados construir pelo pai, no quartel, com recurso à mão-de-obra de soldados que sabiam de carpintaria.
Quando a força aérea aliada chegou ao Friuli, a habitação ficou em perigo, dada a sua proximidade com a estação de caminho de ferro e com uma ponte do Rio Tagliamento. Mãe e filho fugiram para um tugúrio perdido nos campos. Com a ajuda de um amigo, Pier Paolo conseguiu transportar os livros num carro de mão. E assim ficaram I Lusiadi resguardados dos bombardeamentos, num depósito de feno, bem acomodados naquelas estantes escuras.

Em janeiro de 1950, Pasolini, acusado de má conduta moral, foge intempestivamente para Roma e a mãe acompanha-o. A biblioteca de Casarsa, já incompleta, chegou a Roma em 1951, com o pai. Foi morar para a periferia nordeste, em Ponte Mammolo, numa casita ainda em construção. De Ponte Mammolo, passou para os dois apartamentos em Monteverde Vecchio, o de Via Fonteiana e o de Via Giacinto Carini, sempre arrumada nas prateleiras escuras.

Foi com a mudança para a zona da EUR (Esposizione Universale di Roma), em 1963, que também as estantes mudaram de cor. Pasolini adquiriu um apartamento em Via Eufrate e mandou fazer estantes novas, de madeira clara, herdeiras do funcionalismo moderno. Iam até ao teto, cobrindo as paredes do seu quarto e de áreas de circulação da casa. I Lusiadi lá estavam. Não tinham feito parte daquele conjunto de livros do qual Pasolini teve de se desfazer para mitigar os constrangimentos económicos que o afligiram quando chegou a Roma, nem do que tinha levado para Torre di Chia (Terni), a casa de campo adquirida em 1970, muitos dos quais aliás se perderam. Quanto às referidas experiências do poeta épico de 13 anos, delas não restam sinais no seu acervo.

Se nos perguntarmos que espaço ocupou Portugal nos vastíssimos horizontes de Pasolini, não haverá muito mais a assinalar, para além do volume de I Lusiadi, que foi preservado dos bombardeamentos da guerra no depósito de feno, e que foi guardado na sua biblioteca até ao último dos seus dias.

Pasolini era um viajante entusiasta. Na década de 1960, uma série de viagens levou-o até regiões e países periféricos do sistema mundial: Norte de África, Próximo Oriente, Índia, Quénia, Sudão, Gana, Nigéria, etc. Nunca se interessou pela Península Ibérica. Em 1942, participara num encontro da juventude universitária das ditaduras, realizado na Alemanha. As impressões que colheu, e cuja publicação uma censura desatenta não proibiu, ajudam a perceber os motivos pelos quais nunca se teria interessado por outras viagens a países europeus sob regime ditatorial.

Em julho de 1974, numa entrevista a Il Mondo em que aproxima a tendência para o aburguesamento de uma nova forma de totalitarismo, prevê, en passant, que dentro de cinco anos o “fascismo consumístico” mudaria radicalmente a sociedade portuguesa, pondo fim às ingénuas esperanças revolucionárias.

Das pesquisas realizadas quer em arquivos portugueses, quer no Gabinetto Vieusseux, onde estão depositadas cerca de 6200 cartas recebidas por Pasolini, não resultaram indícios de correspondentes portugueses, num tempo em que a correspondência era o principal meio de comunicação entre os intelectuais europeus.

Em vida do autor, foram editados em Portugal apenas dois romances, Uma vida violenta, em 1965 (trad. José Manuel Calafate e João da Fonseca Amaral, Portugália); e Vadios, no ano seguinte (trad. Virgílio Martinho, Ulisseia). A prosa do primeiro Pasolini, com o seu sopro de realidade, podia criar uma sintonia mais direta com o programa dessas editoras. Mesmo assim, a escolha do subproletariado romano como grande protagonista romanesco tinha inspirado reservas ao destacado quadro do Partido Comunista Italiano, Carlo Salinari, que criticou a ausência de uma base ideológica adequada.

Quanto à produção ensaística e à poesia de Pasolini, só depois da sua morte passaram para língua portuguesa: em 1977, Últimos escritos (trad. Manuel Braga da Cruz, Centelha; rec. António Pedro Pita, Boletim Zoom. Associação Académica de Coimbra, 1997); e em 1978, Pasolini, poeta (ed., trad. Manuel Simões, Plátano) e As cinzas de Gramsci (trad. Egito Gonçalves, Inova).


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