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Santa Ana com a
Virgem e o Menino (1519) - Albrecht
Dürer
óleo s/tela, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
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"Quarenta
anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo
passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A
velhice tem suas alegrias, as sua compensações - todos dizem isso, embora você
pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia,
também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela
nostalgia da mocidade.
Não
de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas
efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu
sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de
criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram
as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus
filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você
não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres -
não são mais aqueles que você recorda.
E
então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação
ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis -
nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua
raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida.
Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é
"devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito
sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao
contrário, causaria escândalo ou decepção, se você não o acolhesse
imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu
coração.
Sim,
tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as
mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que
vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.
Aliás,
desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências
da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse
avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...
No
entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave
maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não
deixa por isso de ser a mãe do neto. Não importa que ela hipocritamente, ensine
a criança a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha" e lhe conte
que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas,
nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições
respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito
semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas
as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe
banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a
obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a
avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto.
Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear,
"não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirolito. Não tem a menor
pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último
recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma
noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos
de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido,
antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar
a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com as
cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender e apagar a
luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone.
Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado!
Fazer
má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços do avô, e lá
escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...
Sabe-se
que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres
da alma. Porém não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o
seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui em baixo você ainda tem o direito
de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das
outras avós com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu
maravilhoso neto!
E
quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe
reconhece, sorri e diz "Vó", seu coração estala de felicidade, como
pão ao forno.
E o
misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe castiga,
e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo
menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.
Até
as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto:
o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino - involuntariamente! -
bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas
recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para
o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se
zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um simples boneco que
custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague."
Raquel de Queiroz (Fortaleza, 1910-Rio de Janeiro 2003). Texto em português do Brasil.