quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Os bois e os cêntricos

 

 

 

HUMANOS CÊNTRICOS, CUJA VIDA É TERRIVELMENTE SEMELHANTE AO BOI QUE EM MOVIMENTOS CIRCULARES COLOCAVA MÁQUINAS SIMPLES EM MOVIMENTO.

 

O

centenário de Cesariny ou o sentenário de Sesariny — um césar surrealista. Surrealistas, viventes que gostavam de trocar letras do alfabeto e, acima do mais, de sabotar raciocínios; colocar armadilhas para pássaros no antes tranquilo caminho da linguagem ou das artes. Sabotar também a vida, se possível, eis um dos lemas. A vida normal não seria boa e o surrealismo aparece em parte para melhorar a vida como se melhora uma obra de arte: com gestos surpreendentes e o virar de costas à “delicadeza que nos faz perder a vida”; indelicados, mas lúcidos, os surrealistas elogiavam, acima de tudo, o amor:

“Amor
fenómeno
micro elétrico
raramente visto
o barco salva-vidas
isolado
perfeito”

escrevia Cesariny. Amor: barco salva-vidas isolado, perfeito — definição tão certeira como fogo que arde sem se ver. Definições surrealistas a avançarem lado a lado com as definições já clássicas.

Breton, o Papa surrealista como era conhecido, quando se cruzava com alguém, que não via há muito, dizia “Adeus”; despedir-se, pois, de quem se reencontra, no primeiro segundo. Transformar o reencontro numa despedida, atitude surrealista por excelência: inverter as circunstâncias como se as circunstâncias fossem um simples copo de água que se pode colocar de cabeça para baixo sem que a água caia por cima de nós.

Alguns outros versos de Cesariny, uns quase ecologicamente calmos (o surrealismo quer a beleza, uma outra):

“Já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de olhos fechados a passagem do vento”.

E depois no poema ‘Estação’, alguém que vai esperar no cais e

“Aqui chegado até eu venho ver se me apareço” — e todos estamos então, os acelerados urbanos, nesse percurso de ir rápidos e ansiosos à estação para ver se cada um se aparece a si próprio, ou se, pelo contrário, alguém chega tardíssimo a si próprio como um comboio em avaria constante ou um senhor de 80 anos que murmura: finalmente vou fazer o que quero. Há horários a cumprir na vida da normalidade sofrida e há também atrasos bem mais calamitosos do que outros, diríamos, e chegar atrasado a si próprio é o mais intolerável dos atrasos.

Com que idade chegaste a ti próprio? Eis uma pergunta nada didática, bem temível — e talvez este século esteja a produzir, neste particular, os atrasos mais significativos.

Artaud falava, e como isso é atual, da “superprodução de loucos” que as diferentes proibições sociais (e também a vida sem sentido) provocavam; uma superprodução de multidões de loucos diríamos. Aquilo que um autor, Arno Gruen, chamou, num outro contexto, de loucura da normalidade: uma loucura com horários, das nove às cinco, para fazer o que muitas vezes nos é indiferente ou incomoda; esta loucura absoluta de, só com uma vida e bem finita, o humano usar grande parte dela em sistemas de obediência e em ações ou trabalho que lhe causam mal-estar.

Curioso que os movimentos vanguardistas russos — lembrar nestes tempos, sempre que possível, esta extraordinária cultura — cruzavam-se, mesmo que aparentemente de costas uns para os outros, com os movimentos surrealistas — por exemplo, por lá havia uma Fábrica de atores excêntricos, FEKS. Produzir atores incapazes de representar senhores e senhoritas sentados no sofá a ver a paisagem da janela.

Podemos pensar, aliás, que existem atores excêntricos e atores cêntricos — atores que têm sempre o mesmo centro ou, pelo menos, um centro — atores, portanto, que se movimentam como uma circunferência, que andam sempre à roda e dos quais já sabemos o futuro percurso (é da geometria: se souberes centro e raio, traças uma circunferência com qualquer compasso mecânico).

E sim, a lotaria, segundo a publicidade, faz excêntricos. Já a estúpida e agressiva vida cara que exige dos vivos muito trabalho para os simples paz, pão, saúde e educação faz cêntricos ao peso, muitas toneladas de apáticos cêntricos. Humanos cêntricos cuja vida é terrivelmente semelhante ao boi que em movimentos circulares colocava máquinas simples em movimento. Cada um é muitas vezes boi da sua vida pondo, sem o saber, uma qualquer micromáquina social a funcionar. De muitos bois ilúcidos precisa a grande máquina da cidade para funcionar sem colapsos.

O surrealismo em parte era isto, não o dizia, mas interpreto assim: um movimento de libertação do boi que sem cordas à volta do corpo, afastado dos seus movimentos circulares, pode marrar à vontade com toda a sua força contra quem quiser.

Bem mais do que um movimento artístico — um perigo político e necessário, o surrealismo.

 Gonçalo M. Tavares. "Os bois e os cêntricos", E-Revista Expresso, Semanário#2651, 18 de agosto de 2023.

 

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