quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Trinta Clássicos das Letras|2.Guerra e Paz, de Leão Tolstoi




Imagem: adaptação do romance pela BBC


As guerras matam e dilaceram as sociedades. Suscitam situações limite. Leão Tolstoi em Guerra e Paz (publicado entre 1865 e 1869, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Presença, 2005) analisa o fenómeno de um modo único. A vida e a morte coexistem em cada momento, o heroísmo e a cobardia confundem-se, o instinto de sobrevivência mistura-se com a racionalidade. 

Tolstoi (1828-1910) compreendeu bem que apenas poderia representar a sociedade ameaçada através de um combate de vida ou de morte… “O historiador apenas se ocupa do resultado adquirido, o artista ocupa-se do facto em si mesmo”. A vontade e o destino, a liberdade e a necessidade lutam entre si. O General Inverno soma a sua força ao método da terra queimada. E o czar Alexandre I torna-se o braço da Providência. O príncipe André Bolkonski morre na sequência de Borodino. É o símbolo heroico e trágico. O conde Pedro Bezukhov assume todas as dúvidas e contradições da transição e casa com Natasha, símbolo da vida – que encontrara e perdera o amor na pessoa de André. 

Os ideais da revolução francesa confrontam-se com a sociedade tradicional russa. É a Europa em carne viva e prevalece a voz da terra e do sangue. Borodino é o canto do cisne para o Imperador Bonaparte. Napoleão encontra os dias do seu fim nas cidades e nas estepes da Rússia, num combate contra poderosos fantasmas. O destino e a vontade encontram-se e desencontram-se. “O ato humano aparece como uma mistura de liberdade e de necessidade”. Fatalidade? “A história não tem por objeto a vontade do homem, mas a ideia que fazemos dela”. Pedro começa por acreditar na força da liberdade humana, genuinamente, mas o tempo vai levá-lo a desenganar-se. E esse percurso é comum ao do Conde de Tolstoi, que fala da lei psicológica, “que compele o homem que realiza o ato menos livre possível a imaginar imediatamente toda uma série de deduções retrospetivas destinadas a provar a si próprio que é livre”. 

No fundo, Tolstoi não se limita a relatar-nos um acontecimento romanesco. Talvez haja quem leia Guerra e Paz como “A História da Guerra do Peloponeso”, de Tucídides. Mas falta a paixão que sentimos por Natasha, quando ansiamos pelo seu reencontro com André, já no leito de morte, na presença silenciosa da princesa Maria… “A inteligência humana não compreende a continuidade absoluta do movimento” – diz-nos Tolstoi. “Enquanto Aquiles percorre a distância que o separa da tartaruga, esta ter-se-lhe-á adiantado a décima parte desse espaço e quando Aquiles tiver percorrido essa décima parte, a tartaruga ter-se-lhe-á adiantado a centésima e assim por diante até ao infinito”. Bezukhov não renuncia a procurar uma explicação para tudo, quer ver com olhos de ver, compreende a importância das contradições e das perguntas sem resposta. A sua aparente distração significa essa procura. Trata-se de distinguir o percurso do ponteiro do meu relógio e o badalar dos sinos da igreja vizinha – são fenómenos distintos, mas sincrónicos. O movimento não sofre interrupção e a História tem de compreender a que leis obedece tal movimento… Rostov, Bezukhov, Bolkonski tecem as teias em que o imperador, o czar e os seus estados-maiores vão agir, numa aparente liberdade plena com capacidade para contrariar a necessidade, sem as terem, verdadeiramente. “O poder não é mais do que uma palavra, cujo significado nos é desconhecido”.

Agostinho de Morais
Raíz e Utopia, Centro Nacional de Cultura, 2 de agosto de 2019


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