Luís Pedro Nunes
Há homem | E-Revista Expresso
FOTO GETTY IMAGES
Dê um sorvo na palhinha e estique-se na espreguiçadeira que vai demorar 500 anos a decompor-se. Tenho novidades
O
quarto de hotel, espaçoso, já tinha aquela onda de plastic free, que agora os mais carotes querem dar-se ares. Não há cá garrafas de água de plástico, e as de vidro têm o timbre da unidade hoteleira, para dar mais sainete. Em cima da cama, uma tartaruga de pano e uma nota escrita a tentar sacar-me mais dois dólares de diária para um fundo ecológico. Ao lavar os dentes, percebi que me esquecera da minha escova no outro hotel e lá saquei do pacote (em papel) em que disponibilizam uma com um minidentífrico. O cabo era de plástico. Tive um pequeno momento de “apanhei-vos!”. À noite percebi que tinham vindo abrir a cama e — olha... — deram uma arrumadela na casa de banho. Quando fui lavar a dentuça, não encontrei a escova nem o tubinho de pasta. Procurei e nada. Abri a gavetinha e lá estava outra à espera de ser encetada. Estranho. No dia seguinte tive o cuidado de colocar a escova e a minipasta dentro do copo. Quando regressei, ao fim do dia, os meus pertences estavam imaculadamente organizados — perfume, desodorizante, hidratante em parada militar —, mas o copo estava vazio. Tinham atirado para o lixo — deduzo — a escova de dentes e a pasta “que lhes pertenciam”. Lá estava uma nova à minha espera. E na cama um novo penduricalho a pedir à minha moral ambientalista dois dólares para salvar as tartarugas. Não tive tempo nem pachorra para criar um caso, pois ia-me embora nesse dia. Mas juro por tudo o que me é sagrado que me lembrei do momento em que li a descrição da ilha deserta do Pacífico que tinha inspirado Darwin e que nunca tinha sido habitada que foi “encontrada” submersa em plástico. Ao decidirem limpá-la, contabilizaram 373 mil escovas de dentes e 975 mil chinelos. As duas escovas que me “desapareceram” terão ido dar à costa a um desses lugares.
O meu instinto de sobrevivência como cronista diz-me que em agosto devia manter os temas levinhos e sillys. Ninguém quer angústias em férias, pá. Tentei ignorar Trump, o perigo nuclear da contenda indopaquistanesa em Caxemira e até os desmandos do capitão motosserra na Amazónia. Mas cometi o erro de ligar a BBC World numa tarde de chuva tropical onde a água do mar está sempre a 29 graus e as praias ainda não foram atacadas pela epidemia do sargaço, que está a matar o turismo nas Caraíbas. Vi um jornalista prostrado nas neves “eternas” do Ártico canadiano a contar-me uma história que também não me apetecia ter visto: há plástico, em abundância, em colunas de gelo de dois metros, arrancadas do coração mais puro do nosso planeta. Foi um murro no estômago. O local da Terra que temos por imaculado... Há plástico nas tempestades de areia do Sara, nos cumes dos Alpes e nas profundezas inexploradas dos oceanos. Não há como não o respirar. Vamos sufocar tudo antes de morrermos envenenados na nossa arrogância.
Algo se passou. Parece que a situação se agudizou de forma exponencial em pouco tempo. Para início de conversa, há dois anos, a China deixou de receber plástico de países industrializados. Não é que não deitasse parte para o oceano. E o Ocidente, em vez de aproveitar a oportunidade para alterar comportamentos e refazer políticas de reciclagem, basicamente começou a atirar o seu plástico para o mar. Os EUA usavam a China como seu caixote do lixo. Portugal também exportava plástico para lá. Curioso: desde que os chineses decidiram banir as importações de lixo, as notícias sobre plástico inundaram os feeds.
Estou para aqui a falar e sei que só cortei nos sacos das compras e que por vezes me servem a bebida com uma palhinha de papel. Se optar por um qualquer mecanismo de desculpabilização, sinto que “estou a fazer a minha parte”. Que treta. Nos últimos meses, a quantidade de plástico multiplicou-se à minha volta. Basta um fim de semana de Uber Eats fechado em casa. Olhe-se para as prateleiras dos hipermercados. É fruta e mais fruta descascada e cortada em caixas de plástico — a decompor-se rapidamente —, porque chegámos a um ponto civilizacional em que já não queremos separar bagos de uvas e morangos e cortar melão e achamos que o plástico é uma proteção e um transporte muito melhor do que aquilo que a natureza lhes deu. Sim, uma casca de melancia vs.uma caixa de plástico... como não optar por esta última?
Estamos a perder a sensibilidade para estes temas. A neve do Ártico está coberta de plástico? Que chatice... e passa à frente. Li esta semana um texto muito triste. Um habitante da Islândia a despedir-se de um glaciar dado oficialmente como morto (derreteu): “Como se faz a elegia de um glaciar? Pensem nisso. Cresci com os glaciares como sendo um símbolo da eternidade. Como se diz adeus a algo que era suposto estar aqui para sempre?” Fotos de satélite mostram que a mancha branca de 1986 foi substituída por terra árida em 2019. A Gronelândia também está a ficar sem glaciares. Há quem diga que imensas riquezas minerais estão agora por explorar. O Presidente Trump mandou inquirir se os EUA podem comprar a Gronelândia. Estava a falar a sério. É uma boa oportunidade de negócio, acredita. E nada disto já nos revolta durante muitos minutos, pois não? A capacidade de nos indignar está plastificada, como aqueles sofás, para não se estragarem. É que é tanto o uso que não queremos carcomer e ruçar o nosso tecido emocional.
Expresso, 24 de agosto de 2019
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