sábado, 24 de agosto de 2019

Trinta Clássicos das Letras|22.O Memorial do Convento, de José Saramago





Palácio, Basílica e Convento de Mafra





Memorial do Convento, de José Saramago (1922-2010), foi publicado em 1982 e constituiu um grande sucesso literário, pelo tratamento do tema, pela vivacidade e ritmo da escrita, pelo domínio da língua portuguesa.

É o retrato do rei D. João V e da sua magnificência, num tempo dominado pela riqueza do ouro do Brasil no reino, numa rica convergência de elementos contraditórios, bem evidenciados na complexidade das personagens escolhidas.

Se para Victor Hugo o protagonista de Notre-Dame de Paris foi a própria catedral, também para Saramago a personagem fundamental, em torno da qual tudo se desenvolve o romance, é o Convento de Mafra. "Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento de Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido"...

A riqueza do ouro, transportado em arcas, contrasta com os vários operários anónimos que contribuem para a magnífica construção. E entre eles, está Baltasar Mateus, que tem a alcunha de “Sete-Sóis” porque vive atraído pela luz, tendo perdido a mão esquerda na guerra da sucessão de Espanha. Baltazar ama Blimunda Jesus, chamada de “Sete-Luas”, porque consegue ver no escuro e por dentro das pessoas. Esta, ao ter esta capacidade, consegue recolher as vontades de cada um, como nuvens abertas ou nuvens fechadas. 

Os dois conhecem um clérigo visionário, o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, “o voador”, marcado pelo espírito científico e pela heterodoxia religiosa, que inicia a construção de um aparelho voador, a Passarola, com o objetivo de subir em direção ao Sol, em lugares a que só Cristo e os santos tinham chegado. A concretização deste sonho torna-se uma obsessão e leva-o a viajar primeiro para a Holanda, em busca do segredo, que permitiria a Passarola voar, e depois para Coimbra, onde se doutorou. É ele, aliás, quem realiza o batismo e a comunhão de Sete-Luas e Sete-Sóis: «o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou: Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um». Após um dos voos da Passarola, Bartolomeu foge para Espanha, perseguido pela Inquisição, enquanto Blimunda e Baltasar tratam de esconder o aparelho entre os arbustos da serra e de fazer a sua manutenção.

Não podemos esquecer a figura do grande músico Domenico Scarlatti que, a convite do Padre Bartolomeu, participa no projeto da Passarola, como testemunha silenciosa. Então une-se a ciência e a arte, como reveladoras de um espírito de inovação, de respeito e de abertura ao progresso. Scarlatti instala secretamente o seu cravo na Quinta do Duque de Aveiro, onde toca a sua música e inspira a construção da Passarola, símbolo da modernidade e dos novos tempos das luzes. E quando Blimunda fica com a estranha doença do esgotamento na recolha das vontades, a arte do músico provoca uma cura completa. Um dia, Baltasar ficou preso à passarola, enquanto fazia a sua manutenção, e os cabos que a impediam de se elevar nos céus rebentaram, tendo sido levado pelos ares. A aeronave então despenha-se e Baltasar é capturado pela Inquisição, acusado de bruxaria. Blimunda recolhe, no epílogo do romance, a vontade de Baltasar, enquanto este morre, condenado à fogueira.

E quem é Baltazar? Um homem simples, rudimentar, resignado, terno e fiel, que ama Blimunda, a qual compensa a mão que lhe falta, mas que lhe permite compreender para além do que vê, aceitando o que a vida lhe oferece. E no final é Blimunda quem sobrevive, ela que aprendera tudo o que sabia ainda no seio de sua mãe, onde estivera de olhos abertos.

Agostinho de Morais
Raíz e Utopia, Centro Nacional de Cultura, 22 de agosto de 2019




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