quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Conversem uns com os outros



José Tolentino Mendonça
Que cousa são as nuvens | E-Revista Expresso 





É EVIDENTE QUE HOJE CONTINUAMOS A CONVERSAR, MAS PARECE QUE CONTAMOS MENOS COM O QUE DAÍ PODE PROVIR
V
i uma vez, à entrada de um café, este aviso gentil impresso em tamanho garrafal, impossível de passar despercebido: “Não temos Wi-Fi. Conversem uns com os outros”. E, como tudo na vida, há quem o lesse e entrasse no estabelecimento a sorrir e há quem, com visível desconforto, procurasse outro poiso. Conversar com os outros — ainda o saberemos fazer? Penso em algumas pinturas que representam a história humana como uma conversa. No célebre fresco de Rafael, intitulado “Escola de Atenas”, onde a emergência do pensamento filosófico é contada como uma sucessão interminável de conversas: a de Platão e Aristóteles no centro, mas também a de Sócrates, Epicuro, Heraclito, Euclides, Pitágoras ou a da única mulher ali citada, Hipácia, uma importante matemática e astrónoma de Alexandria. Mas penso também nas conversas dos ceifeiros de Bruegel, onde se vê, sob a tortura da fadiga imposta, como a palavra partilhada é um reduto e um alimento. Ou nesse autorretrato de Matisse, conversando com a mulher, ele de pijama azul às riscas, ela de robe verde, a mesma cor da janela aberta sobre uma manhã despreocupada de verão, há mais de cem anos atrás. Não seríamos o que somos sem a conversa.

É evidente que hoje continuamos a conversar (e a cavaquear, a confabular, a conferenciar, a grulhar, a parlamentar, a prosear, etc.), mas parece que contamos menos com o que daí pode provir. Mesmo se não o reconhecemos, à custa de recorrermos a um conhecimento prefabricado que nos é servido num ecrã, tornámo-nos menos curiosos pelo mundo do outro que temos diante de nós. Neste afã por conectar com o distante, empobrecemos a relação com o que está próximo. O nosso discurso povoa-se de intermitências. Estamos e não estamos. A concentração dura o instante de um relâmpago. O tempo real de escuta cai. O baraço que permitimos ao desenvolvimento da palavra é sempre mais curto, porque nesta nossa época o que não for imediato não existe.

Neste afã por conectar com o distante, empobrecemos a relação com o que está próximo. O nosso discurso povoa-se de intermitências. Estamos e não estamos.

As conversas, porém, precisam de tempo. São as deambulações, as digressões e as derivas que nos conduzem à ciência do encontro, que nos desarmam enquanto falamos ou escutamos, que nos sobressaltam ou comovem, que nos deslocam interiormente, que nos interligam. Montaigne definiu a conversa como “um falar franco que abre caminho a um outro falar”. É um belo modo de descrever aquilo que numa conversa verdadeira acontece, quando a confiança oferecida pela palavra e sustentada pela escuta autorizam a expressão desse “outro falar” que está submerso em nós, que espera uma oportunidade de ser dito, e já não se manifesta apenas em palavras, mas numa experiência plena do tempo. Frequentar os outros capacita-nos para o encontro connosco mesmos e o conhecimento próprio dá-nos chaves para viver a aventura da alteridade. A conversa serve-nos de caminho para essas grandes viagens. Ela ensina-nos aquilo que Montaigne observava: que “a palavra pertence em parte àquele que fala e em parte àquele que escuta”. A vida é, de facto, essa circularidade, essa procura do quinhão que nos falta, essa entrega ao outro da metade que nos coube trazer até aqui, e que ele poderá continuar de uma forma imprevista, talvez ainda mais límpida do que aquela de que fomos capazes. Por isso, persiste sempre uma tensão na experiência da conversa. O autor dos “Essais” compara-a ao que acontece numa partida de ténis. Os interlocutores não estão estáticos. Mesmo parados movem-se, segundo a geometria da bola que voa de campo a campo. E o importante, por fim, não é fazer vencer as minhas ideias, nem se adequar às do outro, mas reagir em sintonia, compassar, cadenciar, aprender a alegria da troca.
Expresso, 24 de agosto de 2019

Sem comentários: