O Pensador, de Auguste Rodin
1. Vivemos num tempo com algumas características deletérias. Por exemplo, não penso que seja muito favorável assistirmos em restaurantes a famílias inteiras a dedar num smartfone: o pai, a mãe, os filhos..., que quase se esquecem de comer e sem palavra uns com os outros. É bom estar informado, mas neste dedar constante perde-se o contacto autêntico da e com a família, esse estar presente aos outros mais próximos. E, com o tsunami das informações, incluindo as fake news, fica-se sujeito ao engano, à confusão, e corre-se o risco de se estar a criar personalidades fragmentadas, alienadas, interiormente desestruturadas. E, ao contrário do que se pensa, dentro da conexão universal através das redes sociais, sofrendo uma imensa solidão.
A nossa sociedade é também avassalada pelo ruído e pela pressa. Toda a gente corre, sempre com a vertigem da pressa — para onde?, poder-se-ia perguntar. Para longe de si. Quando é que alguém está autenticamente consigo, sem narcisismo, evidentemente? E o ruído atordoador? Quem é que ainda consegue ouvir o silêncio e aquilo que só no silêncio se pode ouvir? A voz da consciência, a orientação para o sentido da vida, Deus? Quem se lembra do dito famoso de Calderón de la Barca, que escreveu que “o idioma de Deus é o silêncio”?
Parece que esta situação vem de longe. O dramaturgo E. Ionesco, já em 1961, se lhe referiu numa conferência, com estas palavras: “Vejam como as pessoas correm atarefadas pelas ruas. Não olham para a direita nem para a esquerda, preocupadas, de olhos fixos no chão, como cães. Caminham a direito, mas sempre sem olhar em frente, pois seguem maquinalmente um percurso já bem conhecido. Em todas as grandes cidades do mundo, é assim que acontece. O homem moderno, universal, é o homem atarefado, que não tem tempo, que é escravo da necessidade, que não compreende que uma coisa possa não ser útil; que não compreende sequer que, na realidade, o útil pode ser um peso inútil, opressivo. Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se compreende a arte; e um país onde não se compreende a arte é um país de escravos ou de autómatos, um país de pessoas infelizes, de pessoas que não riem nem sorriem, um país sem espírito; onde não há humor, não há riso, há raiva e ódio.” No mesmo sentido, chamando a atenção para “as ameaças que pesam sobre uma humanidade que não tem tempo para reflectir”, Ítalo Calvino escreveu: “Essas pessoas atarefadas, ansiosas, que perseguem um objectivo que não é um objectivo humano ou que é apenas uma miragem, podem de repente, ao ouvir o som de uma qualquer trombeta ou o chamamento de algum louco ou demónio, deixar-se arrastar por um fanatismo populista.”
2. Chegámos, deste modo, cavando mais fundo, à raiz da desorientação deste nosso tempo. Ela encontra-se na mercantilização de tudo, em função do lucro, na subordinação à lógica dos mercados. Afinal, como observou agudamente o filósofo Giorgio Agamben, “Deus não morreu. Tornou-se Dinheiro”. E Jesus já tinha prevenido: “Não podeis servir a Deus e a Dinheiro” (com maiúscula, como se fosse um nome próprio, um deus, Mammôn, em aramaico, a língua materna de Jesus). Como escreveu Nuccio Ordine, com a lógica do lucro, grande parte da Humanidade perdeu o direito de ter direitos, multidões morrem de fome; “transformando os homens em mercadoria e em dinheiro, este perverso mecanismo económico gerou um monstro, sem pátria e sem piedade, que acabará por negar também às gerações futuras qualquer forma de esperança”.
A citação recebo-a emprestada de Nuccio Ordine no seu livro A Utilidade do Inútil, um manifesto a favor do “inútil”. De facto, com a mercantilização de tudo e quando só vale o útil, o que serve na lógica do lucro, o que é eficaz e produtivo, a razão técnica e calculadora, tem sentido perguntar: o que vale a poesia, a grande literatura, a música, o saber pelo saber, as Humanidades? É claro que neste universo utilitarista, “um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia de um utensílio e cada vez mais difícil compreender para que servem a música, a literatura, a arte.”
Com a financeirização especulativa da economia, só ficam as leis cínicas do mercado e a aparente omnipotência do dinheiro. E a própria política fica reduzida a negócio (s). Já Rousseau tinha observado no seu tempo: “Os antigos políticos falavam sem descanso de costumes e de virtudes; os nossos não falam senão de comércio e de dinheiro”, como se tudo o que não dá lucro fosse supérfluo ou até perigoso. Mas, então, no quadro da lógica economicista do lucro, tem sentido perguntar: Porque é que nos queixamos da teia infindável da corrupção?
Martin Heidegger chamou vigorosamente a atenção para os perigos do monopólio da razão técnica, instrumental. Porque a técnica não pensa, apenas calcula. E aí temos nós a razão que apenas se interessa pelo que se mede e calcula, pela quantidade, ignorando a qualidade. Mas, então, quem somos e o que é que somos, na abertura constitutiva à Transcendência? Pensando apenas nas “finalidades técnicas” e no “para que serve?”, pergunta-se: onde está a beleza de um pôr do sol, para que serve a ternura de um beijo, o florir de um sorriso de criança, a honra, a dignidade, o pensamento crítico, a gratuidade, a filosofia, o estudo das Humanidades, o mistério do Ser e de se ser? Tudo isso é inútil? No entanto, como disse o biofísico e filósofo Pierre Lecomte du Noüy, “na escala dos seres, só o Homem executa actos inúteis”, acrescentando dois psicoterapeutas, Miguel Benasayag e Gérard Schmidt, que “a utilidade do inútil é a utilidade da vida, da criação, do amor.” No seu livro A Cerimónia do Chá (1906), o japonês Kakuzo Okakura intuiu que a passagem do bruto ao humano se deu com a descoberta do inútil: “O homem primitivo superou a sua condição de bruto ao oferecer a primeira grinalda à sua namorada. Elevando-se acima das necessidades naturais primitivas, tornou-se humano. Quando percebeu o uso que se podia fazer do inútil, o homem fez a sua entrada no reino da arte.” Kant apresentou o belo como o que agrada desinteressadamente; o belo tem a sua finalidade em si mesmo, não é para outra coisa, é “uma finalidade sem fim”.
Frente à desertificação galopante do espírito, impõe-se voltar à aparente inutilidade do “inútil”, ao “fascinante esplendor do inútil”, na expressão de George Steiner, que tem a ver com os valores irrenunciáveis da cultura e da educação livre, da grande música, da arte, do estudo dos clássicos e da filosofia, da dignidade livre e da liberdade na dignidade, do pensar crítico.
Concluo, com Nuccio Ordine: “Se deixarmos morrer o gratuito, se renunciarmos à força geradora do inútil, se ouvirmos unicamente este canto das sereias que nos impele a procurar o lucro, só seremos capazes de produzir uma colectividade enferma e desmemoriada que, confusa, acabará por perder o sentido de si mesma e da vida.” E uma previsão que dá que pensar: cerca de um terço dos portugueses pode vir a ter perturbações de ansiedade. Um facto: está a aumentar o consumo de ansiolítcos, antidepressivos... Sem pôr em questão a imensa dívida para com a razão tecnocientífica, impõe-se interrogarmo-nos sobre se não acabámos por criar uma civilização contra nós.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Raíz e Utopia, Centro Nacional de Cultura, 14 de agosto de 2019 (artigo publicado no DN | 11 ago 2019)
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Raíz e Utopia, Centro Nacional de Cultura, 14 de agosto de 2019 (artigo publicado no DN | 11 ago 2019)
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