Ana Cristina Leonardo
E-Revista Expresso
Shusako Endo, autor de O Samurai.
O romance parte de um acontecimento real da história japonesa, ocorrido no Século XVII
Getty Images
A
divinha-se qualquer coisa de hipnótico em algo que começa assim: “Começou a nevar. Até ao cair da noite, a ténue luz solar tinha banhado o leito do rio coberto de seixos por entre as brechas das nuvens. Quando o céu escureceu, seguiu-se um silêncio repentino. Dois, depois três flocos de neve, flutuando, caíam do céu. Quando o samurai e os seus homens começaram a partir lenha, a neve tocou ao de leve as suas roupas rústicas, roçou os seus rostos e mãos, logo derretendo como que acentuando a brevidade da vida.”
O começo de um livro é precioso, disse Maria Gabriela Llansol, e é bem verdade. Define-lhe o tom, a cadência, a pulsação. Shusaku Endo (1923-1996) apresenta-se aqui como um corredor de fundo, ritmo cardíaco baixo, arranque lento, passada segura. Apontado como o Graham Greene do Japão, facto é que, além de ambos católicos, os dois escritores admiravam-se mutuamente (a temática de O Samurai não está longe de O Poder e a Glória).
Neste romance admirável, tanto na recriação como no estilo, o ponto de partida é um acontecimento real do século XVII, como explica no posfácio Van C. Gessel, académico norte-americano tradutor de língua japonesa. O próprio Endo sentiu necessidade de situar no tempo a estranha aventura de Hasekura Rokuemon: “(...) o meu objetivo ao escrever ‘O Samurai’ não foi retratar a situação do Japão no século XVII. Mas o enredo do romance será sem dúvida mais claro para o leitor que tenha algum conhecimento da perspetiva histórica.”
Como em Silêncio, de 1966, talvez a sua obra mais conhecida, também O Samurai (1980) trata da tentativa de evangelização do Japão, do confronto dos missionários com as autoridades nipónicas e do fechamento do país ao mundo. Numa pincelada, o livro ficciona a misteriosa viagem marítima do samurai Rokuemon ao México (Nova Espanha), à Europa e a Roma, membro de uma embaixada japonesa que vem acompanhada de um missionário franciscano, Velasco, padre bilingue cuja ambição maior é ser bispo do Japão. Se a abertura ao comércio japonês, em troca da pregação da fé cristã no Japão, parece inicialmente nortear a viagem, o intento redundará em fracasso. Fracasso medido também, ou sobretudo, pelo destino das duas personagens, atraiçoadas (como Cristo?) pelos homens e irmanadas no final por uma fé comum. Romance sobre as dissemelhanças e semelhanças da condição humana, obra sinfónica a que Endo vai acrescentando paulatinamente instrumentos, acordes dissonantes entre um narrador impessoal e as vozes comprometidas das personagens, peça dramática que nos encanta e comove, mesmo àqueles a quem não foi concedida a graça (ou a desgraça) da fé.
Expresso, 8 de setembro de 2018
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