José Tolentino Mendonça
Que coisa são as nuvens | E-Revista Expresso
UTILIZAR COM CONSCIÊNCIA EM VEZ DE DESPERDIÇAR É “UM ATO DE AMOR QUE EXPRIME A NOSSA DIGNIDADE”
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a semana passada, o matutino italiano “La Stampa” publicou uma entrevista ao Papa Francisco. Mesmo sendo verdade que Francisco concedeu já um número invulgar de entrevistas nestes anos de pontificado, isso não diminui a força expressiva e de pensamento de cada um dos seus encontros com a comunicação social. Cada entrevista constitui, de facto, um acontecimento. E se não pela raridade, seguramente por alguma coisa que é muito evidente na maneira de comunicar deste Papa: o seu discurso nunca é previsível, nunca evita as perguntas, nunca se esconde detrás de uma linguagem vaga, oficial ou artificiosa. Pelo contrário, ele usa palavras francas, enfrenta com coragem as questões e a mensagem que transmite é incisiva e relevante.
A entrevista ao “La Stampa” foi conduzida por um vaticanista experimentado, Domenico Agasso Jr., que, a dada altura, inquiriu o Papa sobre as razões da convocação, para outubro próximo, do Sínodo sobre a Amazónia. E o jornalista pergunta especificamente a Francisco se ele pode contar algum episódio recente que o tenha marcado em relação à emergência ecológica em que vivemos. O Papa começou, então, por elencar uma sucessão de ocorrências. Por exemplo, que um grupo de pescadores lhe disse que nos últimos meses recolheu seis toneladas de plástico; que os incêndios na Sibéria têm determinado o soltar dos icebergues na Gronelândia; que a inteira população de uma região do Pacífico está a abandonar a ilha onde agora vive, pois ela não existirá daqui a vinte anos... Parecem pontas soltas de problemas distintos, mas não. Elas convergem naquele que o Papa escolhe como o episódio que mais nos deveria alarmar: o Earth Overshoot Day 2019, isto é, o momento em que a Terra passou a viver em sobrecarga, pois esgotámos os recursos naturais que o planeta é capaz de regenerar num ano e começámos a hipotecar os do ano que vem. Ora, Earth Overshoot Day deu-se a 29 de julho! Está à vista que o que consumimos, neste défice ecológico descontrolado, excede amplamente as possibilidades que o planeta oferece. Nas duas últimas décadas o Overshoot Day antecipou-se em três meses, o que significa que a crise ambiental se aprofunda e não estamos a encará-la devidamente. Necessitaríamos já quase dos recursos de dois planetas para persistir no desequilíbrio eufórico e iludido em que ainda vivemos.
O que consumimos, neste défice ecológico descontrolado, excede amplamente as possibilidades que o planeta oferece
Na entrevista ao “La Stampa”, o Papa defende que a salvaguarda da criação é uma questão social de primeira linha, e não apenas uma bandeira verde. E não hesita em definir o momento presente como de “emergência mundial”. Na Encíclica “Laudato Si’”, que é o embrião do Sínodo da Amazónia, Francisco recorda-nos que o futuro imediato do planeta exige de nós, como sociedades e indivíduos, respostas concertadas. Precisamos, por um lado, de uma visão política e económica que incorpore convicções favoráveis ao cuidado do ambiente e não seja apenas uma corrida ao consumir e ao gastar. E, depois, teremos todos de “assumir o dever de cuidar da criação com pequenas ações diárias”, que plasmem um estilo de vida coerente que passe, entre outras coisas, por “evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias...” Utilizar com consciência em vez de desperdiçar é “um ato de amor que exprime a nossa dignidade”
Expresso, 17 de agosto de 2019
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