segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Trinta Clássicos das Letras |15. A morte de Virgílio, de Hermann Broch









Hermann Broch (1886-1951) nasceu em Viena, no momento que ele próprio definiu de um “Apocalipse alegre”, no seio de uma família judaica de industriais do setor têxtil. A sua formação foi orientada no sentido de assumir responsabilidades nos negócios da família em Teesdorf na manufatura têxtil, fiação e tecelagem, mas nunca escondeu a sua inclinação literária e até filosófica. Relacionou-se com a intelectualidade vienense do seu tempo, em especial com Robert Musil, Rainer Maria Rilke ou Elias Canetti. Em 1927, vendeu a fábrica têxtil e decidiu estudar matemática, psicologia e filosofia na Universidade de Viena. 

A sua carreira literária iniciou-se, assim, aos quarenta anos, tendo publicado Os Sonâmbulos, em três volumes, onde se analisam três momentos da história contemporânea, caracterizados pelo “vazio de valores” e pela existência humana dividida entre a o sonho e a realidade. As três datas são: 1888 e a dissolução romântica do mundo antigo; 1905 e a confusão anárquica que prenuncia a guerra; e 1918 quando o niilismo se torna presente e ativo. Os Sonâmbulos, de Broch, procuram, a todo o momento, libertar-se da ética do passado, protagonizando situações contraditórias de racionalidade e irracionalidade. E assim caminham para o abismo. 

Com o Anschluss (1938), depois de ter escrito sobre Hofmannsthal (num ensaio que retomará em 1948) e quando já está a escrever A Morte de Virgílio, é preso, mas um movimento de amigos, entre os quais James Joyce, consegue a sua libertação e a partida para o Reino Unido e depois para os Estados Unidos, graças ao visto obtido por Albert Einstein e Thomas Mann. Além da escrita, empenha-se intensamente no apoio aos refugiados alemães e franceses em fuga à barbárie nazi. 

A Morte de Virgílio é uma obra fundamental, que o autor não qualifica como romance, mas como um poema sinfónico, com o que Hannah Arendt concorda. Cada uma das quatro secções tem um elemento central - a água, o fogo, a terra e o éter – e há um ritmo musical assumido - andante, adagio, maestoso. E a morte do poeta é analisada através da repetição, que procura compreender o absurdo. O quadro da obra corresponde às últimas dezoito horas da vida de Virgílio. Na «Chegada», o poeta de Eneida toma consciência da dispersão da sua vida e da insatisfação que sente. E inicia-se um pensamento em ritmo febril, pleno de contradições e paradoxos, contrastes e dúvidas. Na «Descida», as memórias ganham unidade, dando-se o poeta conta, com trágico espanto, de que a sua vida e a sua obra, se foram fazendo no esquecimento de uma parte importante da existência. As memórias mais antigas correspondem a uma realidade heterogénea, depois vem uma visão lírica interior, surpreendentemente noturna. A terceira parte, «A Expectativa», recapitula as discussões de Virgílio com os amigos – e no «Regresso a Casa», todos estes elementos conflituais se resolvem numa visão sublime e unitária, no momento em que Virgílio deixa o mundo dos vivos. 

Como afirma Maria João Cantinho: «Há uma nobreza incomparável na sua teoria sobre a liberdade e no modo como define a responsabilidade humana». Eis como a literatura deveria considerar a prevalência da atenção e do cuidado relativamente ao outro. Nesse ponto encontramos paralelo em Jaspers e em Lévinas. Hermann Broch morreu em 1951 em New Haven, Conneticut – e é indiscutivelmente um dos grandes autores do século XX.

Agostinho de Morais
Raíz e Utopia, Centro Nacional de Cultura, 15 de agosto de 2019


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