sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Trinta Clássicos das Letras |19. O mito de Sísifo, de Albert Camus





Albert Camus, por Yousuf Karsh




Albert Camus (1913-1960), Prémio Nobel da Literatura de 1957, representa uma das referências fundamentais do existencialismo. Com uma obra rica e multifacetada, o escritor franco-argelino foi, pela liberdade de espírito e pela orientação libertária, aquele que, na sua geração, melhor pôde corresponder à superação do espírito do tempo. 

Foi profundamente criticado, quando publicou O Homem Revoltado (1951), por não se ter eximido a criticar o que alguns consideravam tabu, no contexto da guerra fria, mas o tempo veio a confirmar plenamente a compreensão que teve em relação ao risco da tentação totalitária, que existia e poderia aparecer onde menos se esperaria…

Camus disse que o império dos homens pode desvirtuar os objetivos justos, pela cegueira do poder. Todavia, a culpa dos crimes feitos em nome desse império não é da revolta, mas sim a fuga e o esquecimento relativamente às razões da rebelião. A evolução da história contemporânea demonstrou que Camus estava certo, tendo compreendido os riscos da ilusão sobre a infalibilidade da justiça.

O Arquipélago de Gulag e sobretudo o que se lhe seguiu vieram dar razão a Camus, não porque ele nos tivesse dado uma chave de interpretação, mas porque abriu, pela liberdade crítica, perspetivas para uma análise objetiva dos acontecimentos.

No ensaio O Mito de Sísifo (1942), escrito em plena grande guerra, o tema central é o absurdo, considerando o homem em busca de sentido num mundo ininteligível, na linha do pensamento de Nietzsche. Será que o absurdo conduz ao suicídio? “Não” - responde o escritor - “Obriga à revolta”. E compara o absurdo da vida do homem à situação de Sísifo, figura condenada a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pedra até o cimo de uma montanha, sendo que, uma vez alcançando o topo, a pedra rolava montanha abaixo até ao ponto de partida pela força irresistível da gravidade, destruindo todo o esforço despendido. Sísifo (como acontecera a Prometeu) desafiou os deuses e foi condenado para toda eternidade, a empurrar a pedra até o topo; e a ter de começar tudo de novo, vezes sem conta. Sísifo é, assim, o ser que assume a vida no máximo das suas possibilidades, odeia a morte e, por isso, é condenado a uma tarefa sem sentido, como herói absurdo. Camus apresenta, assim, a grande metáfora da vida moderna, em que “o operário de hoje trabalha todos os dias na sua vida, repetindo as mesmas tarefas. Esse destino não é menos absurdo, mas é trágico porque só em raros momentos se torna consciente".

Contudo, para Camus, também há o absurdo criador ou do artista. E o absurdo da arte encontra-se com a experiência do mundo e com a existência de cada um de nós. “Se o mundo fosse claro, a arte não existiria”. E Camus lembra Dostoiévski e Os Irmãos Karamazov, no qual os protagonistas se encontram, ao explorar os limites da existência, num caminho de esperança e fé, que os leva a não serem criações totalmente absurdas. Camus sentiu-o quando, em plena guerra da Argélia, invocou os riscos sofridos por sua mãe quando a violência tomou conta do quotidiano da vida, apesar da justeza da luta. O seu compromisso pela Resistência, a sua opção pela liberdade, não impediram que fosse incompreendido e acusado em nome de uma lógica abstrata e cega.

Também no ano de 1942, Camus publicou O Estrangeiro, protagonizado por Mersault, que assassina um homem e é condenado à morte, mas vive a permanente indiferença em relação a todos os valores morais. Não aceita as regras do jogo. Contudo está disposto a ir até o fim na defesa da verdade em que acredita. Mersault desmascara a hipocrisia alimentada pela sociedade e por cada um – o homem abandona quem ama, mas também é abandonado, e é impotente perante as desgraças que presencia, e que finge não ver. O Estrangeiro disseca o que está errado, abre-nos os olhos para a limitação das falsas regras morais.

Camus morreu em janeiro de 1960 num brutal acidente de automóvel. O seu amigo e editor Michel Gallimard também perdeu a vida. Conduzia um Facel Veja e insistira para que o escritor aceitasse a boleia, ainda que tivesse já comprado os bilhetes para viajar de comboio com René Char. Consigo tinha o manuscrito de O Primeiro Homem, romance autobiográfico, que deveria sempre ficar inacabado. 

Como escritor, filósofo, romancista, dramaturgo, jornalista e ensaísta, Albert Camus tornou-se o verdadeiro exemplo de quem sofreu na pele as angústias e incompreensões decorrentes da lógica do absurdo, sem nunca deixar o apego necessário à liberdade.

Agostinho de Morais
Raíz e Utopia, Centro Nacional de Cultura, 19 de agosto de 2019


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