quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Genial Ferrante






Ilustrações de Andrea Ucini para as crónicas “Nacionalidade Linguística”....



Durante um ano, a autora de “A Amiga Genial” escreveu semanalmente para o jornal inglês “The Guardian”. As crónicas de Elena Ferrante foram agora reunidas em livro com ilustrações de Andrea Ucini

TEXTO CRISTINA MARGATO
N
a falta de novos romances que possam satisfazer a voragem dos leitores de “A Amiga Genial” há um novo livro de crónicas de Elena Ferrante. Chama-se “A Invenção Ocasional” (Relógio D’Água). Reúne as crónicas que a italiana escreveu a convite do jornal inglês “The Guardian”, entre janeiro de 2018 e janeiro de 2019. Nelas é possível reconhecer o estilo de Elena Ferrante, ainda que a voz que usa seja distinta daquela que a escritora coloca nos seus romances.

O registo é semelhante ao que usou em “Escombros” (Relógio D’Água, 2016), coleção de textos avulsos na qual se incluem reflexões, correspondência trocada com aqueles que adaptaram ao cinema os seus livros ou com os jornalistas a quem foi dando entrevistas por escrito, sem nunca desvendar o mistério da sua identidade.
Ao partilhar, na introdução de “A Invenção Ocasional”, o processo de escrita das crónicas, Elena Ferrante acaba por revelar-se mais como romancista do que como cronista. Numa só frase é o seu método obsessivo de escrita que sobressai, e também a certeza de que a fluidez da sua narrativa é fruto de um trabalho contínuo e esforçado: “Se à primeira versão de uma narrativa se segue de imediato um tempo longo, por vezes muito longo de aprofundamento, de reescrita, de extensão ou de meticulosa secagem, aqui [nas crónicas] esse processo tornou-se mínimo.” E é neste mínimo, no território desta escrita inesperada, que a obsessão parece atenuar-se. Prevalece, nas suas próprias palavras, “o choque casual entre o tema proposto pela redação [do jornal] e a urgência da escrita”.
O exercício das crónicas é “instrutivo”, como ela o adjetiva, e até surpreendente, na medida em que a autora da tetralogia “A Amiga Genial” se descobre a partir de uma posição que nunca tinha ocupado, a de escrever por obrigação, “encerrada num perímetro inviolável”.
Elena Ferrante escolhe o lugar de “autora de romances” (a expressão é dela), e é partir dele que escreve, colocando, no entanto, o poder do lado dos outros. Escreve porque lhe pedem, e sobre o que lhe sugerem (são os redatores do jornal que lhe servem os temas). Mas escreve a partir dela, oferecendo-nos uma grande proximidade, ou a ilusão de uma grande proximidade — algo que também faz eximiamente nos seus romances.
Essa urgência de escrita de que fala é, porém, bem diferente daquela a que correspondeu em rapariga, ao alimentar um diário, no qual podia dar vazão ao seu “frenesim de verdade”.
A verdade, contudo, não lhe terá dado grande proteção contra o mundo: “Na ficção sentia-me estar, eu e as minhas verdades, um pouco mais em segurança.” E é por isso que saber onde começa a ficção e acaba a realidade em qualquer escritor, e em particular numa autora como Elena Ferrante — que se oculta e assumidamente se reinventa a cada entrevista escrita que dá —, é uma tarefa árdua. Talvez inútil até.
A escritora não quer traçar uma linha de demarcação entre “histórias verdadeiras e histórias inventadas”. E é com essa premissa que podemos partir para a leitura destas crónicas: “Qualquer uso literário da escrita, devido à sua artificialidade congénita, comporta sempre alguma forma de ficção. A questão está antes em saber quanta verdade a ficção logra afinal capturar.”
As crónicas de Ferrante comportam essa verdade que a ficção pode conter. Trabalham sobre a nossa ilusão. E ora nos ‘revelam’ o modo como ideológica e afetivamente Elena Ferrante se inscreve no seu tempo ora nos anunciam as suas manias literárias e artísticas.
A escritora tanto partilha a desconfiança que dedica à proliferação de reticências, e logo a sua convicção de que existe uma obrigação de não deixar “as frases mancas” (porque nenhum discurso depois de começado alguma vez se suspende), como nos anuncia a repulsa que sente pelo ponto de exclamação: “De todos os sinais de pontuação é dele que gosto menos.”
Nesse mero sinal gráfico, que “refloresta” as nossas mensagens instantâneas, Elena Ferrante acusa o excesso. Vê nele “o bastão de comando, o obelisco pretensioso, a exibição fálica”. A mesma exibição fálica a que chama a atenção em muitos outros textos, nos quais denúncia uma dominação masculina, enraizada, desde logo, no comportamento das próprias mulheres.
Um exemplo emblemático disto é um texto a que chamou “As Odiosas”. Nele Ferrante fala das mulheres que se recusam a ser demasiado qualquer coisa, demasiado belas, demasiado inteligentes, demasiado combativas, demasiado simpáticas. Porque “o demasiado de uma mulher produz violentas reações masculinas e, além disso, a inimizade das outras mulheres, que são obrigadas a disputar as migalhas dos homens. O demasiado dos homens, em contrapartida, gera admiração e lugares de comando.

“O demasiado de uma mulher produz violentas reações masculinas e, além disso, a inimizade das outras mulheres, que são obrigadas a disputar as migalhas dos homens. O demasiado dos homens, em contrapartida, gera admiração e lugares de comando”, escreve Elena Ferrante

A consequência é que a força feminina não só é sufocada como, para não perturbar a paz, se sufoca a si própria”. Outro exemplo é o da crónica intitulada “A Narrativa Masculina do Sexo”, onde discorre sobre a forma como os homens reinventaram as mulheres segundo as suas necessidades sexuais, criando um cânone ao qual “não conseguimos ainda subtrair-nos”. Ou ainda o texto a que chamou “No Feminino”, no qual faz o exercício de pensar as personagens masculinas de romances clássicos como femininas, concluindo que “são somente os lugares-comuns sobre o feminino que nos fazem considerar essencialmente masculinos alguns comportamentos”. Os temas sobre o feminino são várias vezes abordados e a crítica à subjugação das mulheres a um sistema patriarcal é feroz.
Elena Ferrante escreve sobre a forma como as escritoras são ignoradas: “Por mais que me esforce, não me lembro de muitos escritores que tenham declarado a sua dívida à obra de uma escritora.” Denuncia os dichotes que os escritores usam para rebaixar as suas colegas, atribuindo-lhes “quanto muito a capacidade de escreverem historietas banais sobre casamentos, filhos, vagos idílios, romances cor-de-rosa ou melífluos dramalhões sentimentais”. Escreve sobre mães, sobre filhas, sobre a gravidez como momento de beleza e de temor, “manifestação portentosa do nosso corpo” que não pode ser cedida “a ninguém, nem aos pais loucos, nem à pátria, nem às máquinas, nem tão-pouco a formas cada vez mais ferozes de humanidade”. Confessa ter dois pesos e duas medidas, quando concede liberdade às mulheres que adaptam os seus textos, e exige respeito pelo olhar dela aos homens que têm as mesmas intenções. Em parte, porque rejeita o “imaginário de género poderosamente estruturado desde há milénios”.
Escreve também sobre a inveja. Sobre o ciúme. Também sobre o medo. Sobre o que a faz ser a última pessoa a sair da festa. Sobre a consciência da morte que lhe acentua a relação com a vida e o medo da doença que a faz desejar a morte. Sobre a primeira vez. E sobre a última vez. E em todos esses escritos, “sob o impulso de palavras tão luminosas como apaixonadas”, vamos redescobrindo essa ‘amiga genial’ que é Elena Ferrante.

E-Revista Expresso, 3 de agosto de 2019


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