sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Autobiografia, de José por José



Francisco Louçã
Estado da Nação | Expresso Diário






J
osé Luís Peixoto publicou a sua Autobiografia, um romance sobre a relação verdadeira e a ficcionada entre o autor e outro José, Saramago. É uma narrativa da admiração, do afeto e até da descoberta, em que não sabemos, nem na verdade interessa saber o que é factual, ou inspirado em factos reais, ou a imaginação do autor sobre a sua admiração por um escritor consagrado e já no auge da sua carreira. Saramago poderia ser o que Peixoto quereria da vida. Mas essa não é a história desta autobiografia. O que ali se lê é outra coisa: é o esforço e o ofício do escritor, no seu quotidiano pesado, algumas vezes exasperado, outras desesperado, raramente tranquilo.




É AO VOLTAR A UMA ESCRITA MAIS PRÓXIMA DA SUA REALIDADE VIVIDA E MAIS LONGE DE ALGUMA IMAGINAÇÃO FICCIONAL QUE O ESCRITOR SE TORNA MAIS OUSADO NA EXPLORAÇÃO DA LINGUAGEM E DOS SEUS PERSONAGENS. GOSTO MAIS DESTE PEIXOTO. CONTANDO DE SI PRÓPRIO, É MAIS LIVRE.




Tanta curiosidade, José olha intensamente para o outro José, consegue um pretexto para falar com ele pela primeira vez, ainda não é íntimo, nem próximo, nem sequer é lido, também ainda publicou tão pouco, mas em todo o caso escreveu um dos seus melhores livros, “Morreste-me”, e porque é que o escritor famoso havia de ter lido uma pequena edição de autor, chega a tempo ao encontro, quer uma entrevista, não sabe se deve gravar ou tomar notas, entorna a bebida na mesa, está nervoso, quer saber mas não lhe saem as perguntas. E depois lê. Talvez o escritor pudesse conhecer o outro escritor só pela escrita, isso podia bastar, afinal é assim para todos nós. Mas José quer conhecer José, quer ver como se move, ouve a voz de Pilar, entrevê os seus amigos, as suas coisas, os seus lugares. Há mais mundo para além da mão que escreve. O roteiro dessa ronda chama-se “autobiografia”, como se o eu fosse aqui uma entidade difusa, quem é quem? E há um amor cabo-verdiano, e há uma criança, e um bairro de imigrantes, e a encomenda de uma biografia.
Em tudo isso há muito do que quem lê José Luis Peixoto já conhece, mas há também uma chispa diferente. É interessante, é ao voltar a uma escrita mais próxima da sua realidade vivida e mais longe de alguma imaginação ficcional que o escritor se torna mais ousado na exploração da linguagem e dos seus personagens. Gosto mais deste Peixoto. Contando de si próprio, é mais livre. Talvez a literatura seja mesmo isto.
Expresso, 6 de agosto de 2019

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