sexta-feira, 2 de agosto de 2019

E se o algoritmo discriminar?




Especialistas alertam para os riscos de discriminação por algoritmos .

FOTO GETTY IMAGES

Tecnologia está a criar novas formas de discriminação no acesso ao emprego. E são mais difíceis de provar
CÁTIA MATEUS
O
caso recente da Amazon e do seu algoritmo de recrutamento “sexista” que, ao replicar as tendências de contratação passadas da empresa (onde o universo de trabalhadores é predominantemente masculino) excluía as mulheres, já tinha servido para demonstrar o quão arriscado é para as empresas deixar as decisões de contratação exclusivamente nas “mãos” da tecnologia. Agora foi o Facebook a fazer soar os alarmes e tornou-se inequívoco para os juristas e especialistas em recrutamento que a mesma ferramenta que pode fazer milagres pelas empresas no momento de identificar talento, pode também ser uma fonte de discriminação para a qual a maioria os sistemas jurídicos ainda não está preparada para responder.

O modelo de negócio da rede social Facebook ficou novamente debaixo de escrutínio público depois de um grupo de mulheres, utilizadoras da rede social, ter movido no final do ano passado um processo contra a empresa de Mark Zuckerberg e nove empresas anunciantes na rede, por discriminação de género nas ofertas de emprego divulgadas através da plataforma. Na base desta queixa está a possibilidade que o Facebook confere às empresas anunciantes de publicar targeted ads (anúncios direcionados para determinado público-alvo). Ou seja, anúncios que mesmo não contendo na descrição da oferta qualquer fator discriminatório são, por indicação do anunciante ou por decisão do próprio Facebook, exibidos apenas a um determinado perfil de utilizadores, consoante a sua etnia, idade, sexo ou outros critérios passíveis de programação. E esta, garantem os especialistas, é uma forma de discriminação preocupante porque é difícil de comprovar.
Desde a passada semana, que o Facebook alterou os termos do serviço de target ads, restringindo a sua utilização e tornando mais transparente o modelo de funcionamento, na sequência de um acordo extrajudicial alcançado com as queixosas. Mas, pelo caminho, esta nova polémica com Zuckerberg fez emergir uma questão de fundo: quando procuramos emprego online podemos ter certeza de que estamos a visualizar todas as ofertas de emprego disponíveis para as nossas qualificações? E podemos confiar na tecnologia e ter a garantia de que não seremos excluídos num processo de seleção por algum tipo de discriminação tecnológica invisível a olho nu? “Não, porque todo o utilizador tem um comportamento que o transforma numa persona e que leva o algoritmo a mostrar-lhe apenas o que é relevante para o seu perfil”, admite Gonçalo Vilhena, diretor de inovação da consultora de recrutamento Randstad Portugal.
CONTROLO TEM DE SER A REGRA
Porém, isto não quer dizer que os algoritmos de recrutamento sejam todos “preconceituosos e enviesados”. Para o especialista, “desde que exista controlo da qualidade dos dados produzidos [que servem de base ao trabalho do algoritmo], é possível assegurar o princípio da não discriminação”. Isto, acrescenta, “é tão válido para as máquinas como para as pessoas”, num recrutamento liderado por humanos. Uma visão que Pedro Caramez, o coach em gestão de carreira que na última década tem treinado os profissionais para tirar partido da plataforma LinkedIn, corrobora.
Pedro Caramez reconhece que “toda a tecnologia tem riscos e benefícios” e recorda que “quem cria um algoritmo cria-o para valorizar determinadas características. Logo, é óbvio que isso pode excluir candidatos ou envie­sar resultados”. O especialista está alinhado com o argumento da matemática americana Cathy O’Neil, quando diz que “os algoritmos são opiniões transformadas em código”, com tudo o que isso implica (ver caixa). E para Pedro Caramez, o que é fundamental é padronizar aquilo que é admissível que seja programado num algoritmo. Ou seja, criar uma ética para os algoritmos.
Essa foi, na verdade, a questão de fundo nas polémicas que envolveram a Amazon, o Facebook e outros casos que têm surgido. Não se sabe ao certo como é que o Facebook determina quem pode e não pode ver determinado anúncio, mas o que uma equipa de seis investigadores da Universidade de Northeastern (sul da Califórnia) concluiu numa investigação sobre o sistema de anúncios da rede social é que “o enorme sucesso financeiro da plataforma de anúncios do Facebook reside precisamente nas ferramentas de targeting que oferece”, e que nos últimos anos se somaram casos de discriminação não só em ofertas de emprego mas também em anúncios para arrendamento de imóveis, que eram apenas exibidos a utilizadores de determinada etnia, consoante as preferências dos anunciantes.
Em Portugal, o Código do Trabalho proíbe toda e qualquer forma de discriminação no acesso ao emprego, mas Carmo Sousa Machado, presidente da Abreu Advogados, admite que a lei atual, cá como noutros países, não está ainda preparada para abordar casos desta natureza. “Esta é uma forma de discriminação preocupante, porque é silenciosa. Num típico anúncio de emprego é fácil identificar a discriminação, mas nestes casos não só é difícil identificá-la como prová-la”, explica. Talvez por isso não se contem em Portugal casos idênticos. E caso existissem, admite a especialista, a jurisdição atual não estaria preparada. “O mercado de trabalho atual não tem nada a ver com o que tínhamos há dois anos, quanto mais há dez, e em termos de legislação laboral não estamos a conseguir acompanhar a velocidade a que está a mudar o mercado”, admite.

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