sábado, 3 de agosto de 2019

A forma humana



Pedro Mexia
Culturas | E-Revista Expresso




Na poesia de Andreia C. Faria não há intensidade como a intensidade do corpo:
 “Que o corpo, em seu afinco,/ é um degrau difícil de descer” PORTO EDITORA




A
ndreia C. Faria nasceu em 1984, mas já causou suficiente impressão para justificar este volume de poemas reunidos. O seu livro mais conhecido, e provavelmente o melhor, é “Tão Bela Como Qualquer Rapaz” (2017), mas “Flúor” (2013) está ao mesmo nível. Segundo título publicado, e primeiro que a poeta quis preservar, pode definir-se como uma quase-tragédia doméstica, campestre, erótica e até teológica. Uma figura, a da mãe, desenha-se frágil e em esforço: “Ela tinha tido medo e não queria que eu lhe fosse mantimento./ Ela era o vento/ arruinando as paisagens de Deus.” Mais ambígua, ou mais ínvia, é a figura paterna: “O meu pai era um homem grande/ mas uma mulher pequena.” Crónicas familiares tristes e agrestes, os poemas vivem entre gados, urzes e uma benigna promiscuidade de clã, como as roupas de um primo usadas por uma prima. Inteiramente natural e inteiramente enigmático, esse universo desencadeia fortes sentimentos contraditórios, com tangentes ao divino, como em “Breaking the Waves”, seja esse divino fé ou alegoria.

O mais notório e o mais notável é, no entanto, a consciência física que têm o “eu” e as personagens. Consciência libidinal, acima de tudo: “Contorcem-se da mesma forma, mulher e veado/ O dorso dela aproxima-se/ pela dor de um desdobramento místico/ As finas sombras do seu esforço oferecem-se à luz/ ou dispersa a luz/ à lassidão.” E consciência de uma presença, de uma energia, em imagens inesperadas: “(...) no chão da sala encontro/ o teu leve estremecer/ de peixe posto vivo onde/ não há água ou aridez/ que a morte traga.” Banhos de mar ou com sabão azul são tão lascivos como outras observações empíricas, peles gretadas, pálpebras inchadas, gravidade, vasos sanguíneos, menstruação, o “some girls are bigger than others”, a animalização do corpo, a decadência e a finitude, a matéria bruta.
Se em “Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração” (2015) se diz que “a beleza é a melhor candeia”, é da beleza comum que se trata aqui, sexuada mas alheia à idealização. Uma beleza que não esconde as feridas do couro dos sapatos nos calcanhares, nem foge a analogias violentas com talhos e matadouros. Isto quando as mulheres não aparecem sarcasticamente como se fossem coisas: “Uma mulher sozinha é um mineral./ Pura, geométrica, uma mulher sozinha/ pertence à geologia mais do que à humanidade.” Glosando Adrianne Rich, e escolhendo como mestres Herberto ou Rimbaud, “Tão Bela Como Qualquer Rapaz” procura personagens exemplares ou excêntricas, ou exemplares porque excêntricas, Aquiles e Pátroclo, Joana d’Arc, Lucian Freud, Sarah Kane, como noutros livros se invoca Frida Kahlo ou Safo, figuras da radicalidade emocional ou da radicalidade representativa.
Alguns poemas descrevem situações de intensidade em parques e jardins, com pavões e magnólias, em casas abandonadas, ou em cinemas à noite, numa tentativa de “ampliar fenómenos”, como se escreve num dos poemas até agora inéditos; mas não há intensidade como a intensidade do corpo: “Que o corpo, em seu afinco,/ é um degrau difícil de descer.” Leia-se um elíptico encontro amoroso no meio de festejos autárquicos e barulhos da máquina de lavar, a narradora “lucífera e madura/ como um figo aos pés de Cristo”. Ou discursos, como este, sobre a servidão voluntária: “Choro-lhes no ombro até que me comova/ a forma humana, as coisas a que pede servidão.” 

Expresso, 27 de julho de 2019


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