sexta-feira, 11 de setembro de 2020

O porquinho Matrix de Musk

 

Startup Axiom Space vai usar a nave Crew Dragon, da SpaceX, para enviar turista à Estação Espacial Internacional
Foto: SpaceX/Divulgação




QUER COLOCAR UM IMPLANTE EM MILHÕES DE PESSOAS PARA COMPETIR COM A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. NINGUÉM O LEVA A SÉRIO. OUTRA VEZ 


Quando há anos, não muitos, Elon Musk anunciou que ia tornar cool os carros elétricos fui dos que terão gozado com a ideia. Hoje ter um Tesla é um sinal de statu económico e de preocupação ecológica. Combinação rara ao exibir um objeto de consumo que varia entre os €50 mil e os €100 mil. Quando Musk, entre devaneios amorosos e ataques de raiva autodestrutiva no Twitter, veio anunciar que iria colocar uma nave no espaço (e iniciar a jornada para Marte) terei feito um risinho de desdém. Há meses foi a SpaceX de Musk que deu boleia a astronautas da NASA. Há dias quando o mesmo tipo de ar alucinado apresentou três porcos à imprensa mundial e garantiu que o “implante neural” colocado no cérebro de um deles iria possibilitar desenvolver modelos que vão permitir ler os pensamentos de humanos, mudar estados de espírito e emoções e fundir o cérebro com a inteligência artificial entre outras coisas de série “Black Mirror” já não achei graça nenhuma. Há quem já não o leve a sério. E há quem ache que este é mesmo o caminho a seguir. Mas feitas as contas, todo este poder entregue a rapazes de Silicon Valley está a correr mal. Há, pois, que pensar o que é isto de Elon Musk querer colocar “implantes neurais” no cérebro de milhões de pessoas “a bem da Humanidade”. 

Factos. Elon Musk, um dos dez terráqueos mais ricos (ali à volta dos €80 mil milhões), quase 50 anos, genial, excêntrico, desbocado. Até aqui aceita-se. Odeia o Zuckerberg do Facebook, acha que a inteligência artificial acabará a dominar a Humanidade. Novamente, nada a dizer do homem. Eis que se dedica a querer mexer e manipular o cérebro humano, a colocar uma porta USB na nuca, ou nesta última versão, um chip do tamanho de uma pequena moeda no cérebro (há que fazer um orifício no crânio) que se carrega à noite ao dormir, e se conecta a uma app do telemóvel. E começo a franzir o nariz. Mas qual é o mal, dizem as hordas de fãs muskianos. Terá a capacidade de “curar” ou reparar complexos danos neurológicos e quem sabe ser a esperança de paraplégicos. E sim, criará um interface cérebro-máquina e uma fusão entre humanos e inteligência artificial. A ver se nos entendemos: isso de fusão humanos-inteligência artificial não é algo que se deixe cair na conversa, entre slides de PowerPoint depois de dar um toque inspiracional após falar em pessoas em cadeiras de rodas. 

A coisa é lançada por Musk de diversas formas. É como ter um Fitbit na cabeça, vamos poder ouvir música “dentro do cérebro” ou abrir o Tesla com uma ordem telepática mas também “poder alterar o nosso estado de espírito no caso de estarmos muito ansiosos”. Mas há mais. Musk acha que só com “supercérebros” poderemos competir com a Fitbit. Ou seja, absorvendo as potencialidades da inteligência artificial e desenvolvendo as capacidades do nosso cérebro. Ora, isso, caso um dia seja possível, levanta tantas dúvidas: haverá duas raças humanas? Uma de inteligência “chipada” e desenvolvida e outra apenas isto que somos? É isso que ele propõe. Se não há pão para todos muito menos um chip de inteligência. Digo eu. 

Surgiram logo especialistas que alertaram para o perigo de o cérebro ser hackeado. Se tem software, se tem um interface, se liga a um hardware, poderá ser pirateado. E se eventualmente numa primeira fase não se podem “roubar pensamentos” (mas esse será o plano) pelo menos podem-se destruir dados. Ou seja, a mente de uma pessoa. Não? 

Voltemos a dia 28 de agosto. Noutra altura esta teria sido uma grande história. Mas estamos a meio de uma pandemia global e o presidente dos Estados Unidos, a poucas semanas da eleição que vai ditar se volta para a Casa Branca ou não, assumiu-se como chefe de fação violenta dos brancos nacionalistas e acha que a incitação ao caos e ao ódio pode salvá-lo. Assim Elon Musk e três porquinhos, um deles supostamente a viver na Matrix pareceu uma coisa patética. 

A “MIT Technology Review” veio dizer que a apresentação de Musk se resumia a “teatro”. Não basta anunciar que se poderá subir rochedos sem medo, ter a cura para a cegueira e paralisia, surdez, cegueira e doença mental, controlo total da consciência, fazer o download de um idioma em minutos tudo num implante cerebral a um preço acessível. É algo que talvez não se vá ver nas próximas décadas se é que alguma vez irá existir. E avançam com o argumento simples: o nosso cérebro é ainda um imenso desconhecido. O implante colocado no porquinho do Musk tem mil canais e é capaz de ler um número similar de neurónios. O cérebro humano tem quase 90 mil milhões de neurónios, divididos por áreas cuja complexidade nem me atrevo a copiar do artigo. De toda maneira, acentuam, Musk nem foi convincente quanto à seriedade da empresa em relação ao tratamento de doenças. Talvez esteja mesmo mais interessado no download de músicas. Ou na telepatia. Ou apenas em abrir a porta do Tesla. 

Não foi levado a sério? Há pouco mais de uma dúzia de anos, uma aplicação de engate de estudantes de faculdade era apenas isso. Hoje o Facebook é considerado uma grande ameaça à democracia. Hoje há revoltas porque há quem acha que usar uma máscara hospitalar na cara em plena pandemia é um atentado à liberdade individual. Mas sobre desenvolver um implante para fundir o cérebro com a inteligência artificial não vai nada, nada, nada? 

Luís Pedro Nunes. O Mito Lógico. E-Revista Expresso, Semanário#2497, de 5 de setembro de 2020

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