segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Imagens em discurso - Efeitos de real, efeitos de verdade






Imagens em discurso - Efeitos de real, efeitos de verdade
Nabil Araújo (Org.)
FALE/UFMG
Belo Horizonte 2019



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Outrora combatidos como resquício indesejado do paradigma historicista do comparatismo ocidental, os estudos de imagologia são hoje “reconhecidos pelo establishment comparatista como uma das bases dos estudos culturais, e até mesmo do ‘multiculturalismo’”, [1] observa Pageaux. Mas o que é uma imagem, no sentido comparatista?

Segundo Pageaux, “toda imagem procede de uma tomada de consciência [...] de um Eu em relação a um Outro, de um aqui em relação a um alhures [...] É a expressão, literária ou não, de um distanciamento significativo entre duas ordens de realidade cultural”; [2] “[uma] língua segunda para dizer o Outro e, consequentemente, para dizer também um pouco de si, de sua cultura”.[3] Eis o que poderíamos chamar de construção recíproca da alteridade e da identidade, do Outro e de Si, no discurso,pelo discurso: “Toda alteridade revela uma identidade – e vice versa”.[4]

Isso implica a substituição da ideia habitual segundo a qual a língua funcionaria como um sistema de etiquetas que se ajustam às coisas “no mundo” por uma concepção de construção de objetos de discurso a partir de uma instabilidade categorial de base; portanto, da ideia clássica de “referente” e de “referência” por aquela de referenciação: “uma construção de objetos cognitivos e discursivos na intersubjetividade das negociações, das modificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do mundo”.[5] Interessamo-nos, aqui, portanto, pelas dinâmicas diversas de cocriação de imagens do Outro e de Si nos discursos,mas também pelos “processos de estabilização” [6] dessas imagens, no sen-tido da produção do que poderíamos chamar, com Roland Barthes, de efeitos de real .
Há meio século, Barthes definia “O dis curso da história” (1967) em termos de um certo “efeito de real”: “A eliminação do significado para fora do discurso ‘objetivo’, deixando confrontar-se aparentemente o ‘real’e sua expressão, não deixa de produzir um novo sentido [...] – extensivo a todo o discurso histórico e que finalmente define sua pertinência”.[7] Pertinência não exclusiva, já que:


Há um gosto de toda a nossa civilização pelo efeito de real, atestado pelo desenvolvimento de géneros específios como o romance realista, o diário íntimo, a literatura de documento, o noticiário policial,o museu histórico, a exposição de objetos antigos, e principalmente o desenvolvimento maciço da fotografia, cujo único traço pertinente(comparada ao desenho) é precisamente significar que o evento representado realmente se deu.[8


Não surpreende, pois, que, em “O efeito de real” (1968), Barthes venha a tratar indistintamente de Flaubert e de Michelet, de romance e de história, sob a rubrica do “realismo”, isto é, “todo o discurso que aceita enunciações só creditadas pelo referente”, [9] e que padeceria, portanto,daquela “ilusão referencial” pela qual se pretende “deixar o referente falar por si só”. [10

Em termos mais amplos do que os de Barthes, digamos que:


A ‘estabilidade’ resulta, de facto, de um ponto de vista realista que relaciona as categorias às propriedades do mundo – como se a objetividade do mundo produzisse a estabilidade das categorias – no lugar de relacioná-las aos discursos sócio-históricos e aos procedimentos culturalmente ancorados. [11]


Pensemos, ademais, esse processo de estabilização referencial--categorial-discursiva para além do barthesiano efeito de real, no sentido do que poderíamos chamar, com Michel Foucault, de efeitos de verdade :

Entendo por verdade o conjunto de procedimentos que permitem a cada instante e a cada um pronunciar enunciados que serão considerados verdadeiros. Não há absolutamente instância suprema. Há regiões onde esses efeitos de verdade são perfeitamente codificados, onde o procedimento pelos quais se pode chegar a enunciar as verdades são conhecidos previamente, regulados. São, em geral, os domínios científicos.[12]


Pensemos, por fim, no modo como Jacques Rancière reconceberá esse mesmo processo em termos da constituição de géneros do dis-curso, com vistas ao programa, não mais de uma “arqueologia” ou de uma “genealogia”, e, sim, de uma poética do saber: “estudo do conjunto dos procedimentos literários pelos quais um discurso se subtrai à literatura, se dá um estatuto de ciência e o significa”,[13] interessando-se “pelas regras segundo as quais um saber se escreve e se lê, se constitui como um género de discurso específico”. [14]


***
Neste livro, reúnem-se os textos revistos de algumas das comunicações apresentadas no simpósio temático “Imagens em discurso: efeitos de real, efeitos de verdade”, no âmbito do XV Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Rio, UERJ, 2017).

Nabil Araújo (UERJ)


Notas

[1] PAGEAUX. Elementos para uma teoria literária: imagologia, imaginário, polissistema, p. 109.
109. 
[2] PAGEAUX. Elementos para uma teoria literária: imagologia, imaginário, polissistema, p. 110.
110.
[3] PAGEAUX. Elementos para uma teoria literária: imagologia, imaginário, polissistema, p. 111.
111.
[4] PAGEAUX. Elementos para uma teoria literária: imagologia, imaginário, polissistema, p. 111.
[5] MONDADA ; DUBOIS. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação, p.20.
[6] MONDADA ; DUBOIS . Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação, p.41-48.
[7] BARTHES. O rumor da língua, p.156.
[8] BARTHES. O rumor da língua, p.156.
[9] BARTHES. O rumor da língua, p.164.
[10] BARTHES. O rumor da língua, p.149.
[11] MONDADA ; DUBOIS. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação, p.27.
[12] FOUCAULT. Poder e saber, p.232-233.
[13] RANCIÈRE. Os nomes da história : um ensaio de poética do saber, p.15.
[14] RANCIÈRE. Os nomes da história : um ensaio de poética do saber, p.15.



Referências 

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense,1988.373 p. 

FOUCAULT, Michel. Poder e saber. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Estratégia, 

poder - saber.Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006 . p. 223-240. 464 p. (Ditos & Escritos, 4). 

MONDADA, Lorenza; DUBOIS, Danièle. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, Mônica Magalhães; 

RODRIGUES, Bernadete Biasi; CIULLA , Alena. (Org.) Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p.17-52.250 p. (Clássicos da Linguística, 1). 

MORETTI, Franco. O burguês: entre a história e a literatura. Tradução de Alexandre Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2014.247 p. 

PAGEAUX, Daniel-Henri. Elementos para uma teoria literária: imagologia, imaginário, polissistema. Tradução de Katia Aily Franco de Camargo. In: MARINHO, Marcelo; SILVA, Denise Almeida; UMBACH, Rosani Ketzer (Org.). Musas na encruzilhada: ensaios de literatura comparada. Frederico Westphalen: URI; Santa Maria: Editora UFSM; São Paulo: HUCITEC,2011. p.109-127.270 p. 

RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da história: um ensaio de poética do saber. Tradução de Eduardo Guimarães e Eni Puccinelli Orlandi. São Paulo: Educ; Campinas: Pontes, 1994.115 p





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