Leonor Santos
Universidade de Lisboa
O conceito de competência
Com a evolução da sociedade, novas exigências vão emergindo, colocando deste modo renovados desafios à escola. Em particular, e no que respeita o ensino e aprendizagem da Matemática, enquanto no passado se privilegiava a aquisição de conhecimentos e a capacidade de os reproduzir de forma correta e rápida, na atualidade, reconhece-se como indispensável ser-se capaz de operar em contextos complexos, caracterizados por problemas mal definidos, e de desenvolver processos abstratos, dinâmicos e integrados. É neste contexto que pela primeira vez em Portugal se pode encontrar expresso em documentos curriculares oficiais o termo de “competência”. Como pode ler-se no Decreto-Lei nº 6/2001, que estabelece a reorganização curricular no ensino básico, o currículo nacional é entendido como “o conjunto de aprendizagens e competências, integrando os conhecimentos, as capacidades e as atitudes e os valores a desenvolver pelos alunos ao longo do ensino básico” (p. 259).
Não pretendemos aqui definir competência, pois arriscar-nos-íamos a ser mal sucedidos. Como afirmam diversos autores, poucas foram as questões em educação que, nos últimos anos, levantaram maior controvérsia do que o conceito de competência (Short, 1985). Havendo diversos significados atribuídos a este conceito, que vai desde o desempenho, o skill cognitivo, ou a qualidade ou estado de ser de uma pessoa, procuraremos antes identificar algumas características associadas ao conceito de competência que na nossa interpretação é utilizado nos normativos curriculares portugueses. São elas:
- Ação. Ao falar-se de um saber em uso, de um processo de ativação de recursos face a uma situação, está associado necessariamente um ato de agir;
- Situação com um certo nível de complexidade. É na possibilidade de tomar decisões satisfatórias e eficazes perante uma situação concreta que tem sentido falar em competência. Não se ativam recursos no abstrato, mas sim face a uma dada situação. Para além disso, não se trata de uma situação rotineira, em que apenas se pede a repetição do que já se fez, mas antes em casos em que é preciso decidir de forma consciente que recursos se devem disponibilizar;
- Integração. Os recursos a ativar compreendem componentes de natureza distinta, onde poderão estar presentes, conhecimentos, capacidades e atitudes. Não se trata de adicionar componentes diferentes, mas antes seguir uma perspetiva holística da atividade intelectual. Por outras palavras, olhar a atividade desenvolvida pelo aluno como um todo e não um somatório de partes.
Perrenoud (1999), ao procurar clarificar o conceito de competência, fala de “invenção bem temperada”, querendo com isto dizer que quando estamos face a uma situação nova o que procuramos fazer em primeiro lugar é estabelecer uma analogia com outra situação que já conhecemos do passado. Em seguida, mobilizamos recursos idênticos ao que fizemos anteriormente. Mas apenas isso não chega. Se a situação é nova, ela tem algo diferente da anterior. É então que devemos introduzir um certo nível de criatividade, de forma a sermos capazes de responder à situação no que ela tem de singular e de distinto quando comparada com todas as anteriores por nós conhecidas.
Podemos distinguir saber de compreensão. Compreender representa uma capacidade intelectual de usar informação. É através da compreensão que conseguimos trazer o saber para fazer face a uma nova situação. Podem ter-se saberes e não se ser capaz de os usar num dado contexto. Há algo mais. Há uma tomada de decisão, antecipando os seus efeitos (Westera, 2001).
Talvez que os indicadores apresentados não consigam ainda clarificar o leitor sobre o que distingue uma competência de um objetivo. No passado fazia-se um ensino dirigido a objetivos pré-definidos centrados em saberes e organizados segundo uma lógica sequencial e linear. Hoje fala-se num ensino dirigido ao desenvolvimento de competências. Haverá diferenças ou trata-se apenas de uma mudança de terminologia? Em nosso entender há de facto uma diferença marcante: enquanto os objetivos são atingidos, é possível afirmar-se que um dado aluno atingiu ou não um dado objetivo, as competências desenvolvem-se. Por outras palavras, há diferentes níveis de desenvolvimento de competências, pelo que a mesma competência pode ser trabalhada ao longo de todo um ciclo, ou mesmo de vários ciclos. Trata-se assim de um processo continuado, com diversos níveis ou graus de desenvolvimento.
Implicações para a organização social da aprendizagem
Se partimos da ideia que o ensino da Matemática deve centrar-se no desenvolvimento de competências no aluno, poderemos questionar quais as condições que terão de ser satisfeitas para que se crie um ambiente de trabalho adequado. Em nosso entender, as implicações que decorrem desta nova forma de encarar o ensino da Matemática dirigem-se tanto ao professor como ao aluno.
No que respeita ao professor, vários são os desafios que agora se lhe colocam. Por um lado, se o desenvolvimento de competências se faz trabalhando com situações novas e complexas, isso exige naturalmente que o professor proponha regularmente aos alunos problemas. Tal exige que o professor seja capaz de construir problemas complexos, não rotineiros e pertinentes. Muito embora se tenha, nos últimos anos, verificado um aumento significativo de materiais para a sala de aula disponíveis aos professores, não há qualquer dúvida que são os exercícios rotineiros aqueles que existem acessíveis em maior quantidade. Assim, planificar fazendo recurso de forma continuada a situações não rotineiras certamente trás um acréscimo de trabalho e de dificuldade para o professor.
Por outro lado, dificilmente se consegue desenvolver um ensino eficaz e convincente se o próprio professor não tem ele próprio uma experiência pessoal de resolução de problemas. Assim, cabe ao professor ter uma prática pessoal do uso do conhecimento em ação.
Por outro lado, ainda, a gestão de uma aula em que se trabalham tarefas de natureza mais aberta é certamente mais exigente do que aquelas em que o professor pode ter o controle sobre todo o desenvolvimento do trabalho. Por muito cuidado e aprofundamento que seja dado à planificação, não é nunca possível prever todas as questões e vias de solução da tarefa proposta, caso ela seja realmente aberta. São atividades de duração difícil de prever, com imprevistos epistemológicos e marcadas por dinâmicas incertas. Assim, cabe ao professor ser capaz de agir na ação, tomando novas decisões ou dando novos rumos à aula que vá de encontro aos interesses e desenvolvimentos intelectuais dos alunos. Estamos obviamente a supor que a aula está centrada no aluno, não se sobrepondo o professor ao natural processo de aprendizagem dos seus estudantes.
Por último, talvez a maior dificuldade que o professor tem de enfrentar é o de ser capaz de aceitar a incompletude. Estamos a referir-nos à necessidade imperiosa do professor ser capaz de resistir à tentação de garantir, em primeiro lugar, que o aluno tenha adquirido um conjunto amplo de conhecimentos para, apenas posteriormente, começar a pensar no desenvolvimento de competências. No limite, tal posição poderia levar à situação de se completar um dado ciclo de escolaridade sem nunca se oferecer ao aluno experiências de aprendizagem favoráveis ao desenvolvimento de competências. Assim, logo após um mínimo de conhecimentos poder-se-á orientar o ensino para o desenvolvimento de competências, podendo novos conhecimentos serem adquiridos como resposta a necessidades sentidas pelos alunos ou decorrentes do desenvolvimento de certas situações. É o problema que organiza os conhecimentos e não o discurso.
Como já anteriormente afirmámos, cabe também ao aluno satisfazer algumas condições sem as quais muito dificilmente as competências serão desenvolvidas. É, por exemplo, o caso do envolvimento consciente e assumido na realização das tarefas. Só aprende quem quer aprender. A vivência de experiências de aprendizagem só pode ser feita por vontade do próprio. Também, sendo as situações que se propõem aos alunos não rotineiras e com algum grau de complexidade, exige-se por parte do aluno persistência, tenacidade e responsabilidade para ser capaz de ultrapassar as dificuldades que eventualmente possam surgir. Sendo o trabalho de grupo um método de trabalho reconhecido como adequado em diversas situações desta natureza, é ainda pedido aos alunos que sejam capazes de se expor, de respeitar e ouvir os outros.
Em síntese, podemos afirmar que um ensino da Matemática orientado para o desenvolvimento de competências exige um ambiente de sala de aula onde professor e alunos terão que progressivamente ser capazes de responder a um conjunto de solicitações sem as quais dificilmente se estabelece um contexto favorável a um ensino com sucesso.
A avaliação de competências
Ao falarmos em avaliação surge desde logo a ideia de reprodução e de prescrição. Mas quando pensamos nas competências, na capacidade para produzir desempenhos adequados a situações não rotineiras a avaliação das competências é algo que levanta muitas questões. Serão as competências entidades fixas e mensuráveis? O nosso foco é o produto ou o processo? Se aprender é acumular conhecimentos descontextualizados, faz todo o sentido que a avaliação se sustente prioritariamente na realização de controlos periódicos, como sejam os testes (Short, 1985). Mas se assim não for? Será mesmo possível avaliar competências ou antes pelo contrário, o que é possível é determinar a incompetência (Westera, 2001)?
As questões aqui mencionadas colocam-se naturalmente quando estamos a associar avaliação à ideia de medida, expressa numa classificação. Entendamos então avaliação como parte integrante do processo da aprendizagem, como um meio que permite ao professor e ao aluno recolher e interpretar informação de forma a introduzir medidas que favoreçam essa mesma aprendizagem. Tal abordagem de avaliação é aquela que atualmente mais atenção é dada nos diversos documentos curriculares. Por exemplo, no texto de lei que determina o sistema de avaliação para os alunos do ensino básico pode ler-se “a avaliação é um elemento integrante e regulador da prática educativa “ (Desp. Normativo nº 30/2001, p. 4438). Também no NCTM (1991) pode ler-se que a avaliação não tem razão de existir a menos que melhore o ensino ou no NCTM (2000), quando se descreve as mudanças de orientações preconizadas, afirma-se que “a avaliação não deve apenas ser feita sobre os alunos, mas deve também ser feita para os alunos, para os guiar e potenciar a sua aprendizagem” (p. 22).
Vejamos, de seguida, alguns exemplos de práticas que privilegiam uma avaliação ao serviço da aprendizagem e do desenvolvimento de competências.
Observação e interpretação de dados.
A observação é uma prática que todo o professor desenvolve na sala de aula, muito embora na generalidade lhe reconheça pouca importância. Por outras palavras, a observação é pouco valorizada enquanto procedimento avaliativo. Em geral, a observação não é acompanhada de registos, pelo que o professor lhe atribui uma natureza muito subjectiva e, como tal, a considere pouco fiável para dela fazer depender juízos de valor que possam sustentar classificações finais de período. Mas, sem dúvida, que é através da observação que muito se pode saber sobre o aluno e, em particular, o modo como é ou não capaz de ativar recursos face a uma situação nova. Observar os alunos durante a realização de uma tarefa é certamente um modo promissor para compreender como o aluno age face ao imprevisto e se é ou não capaz de transferir para novas situações os recursos de que já dispõe. Este é igualmente um meio de que o professor dispõe para interagir com o aluno no momento, apoiá-lo on-line, de forma a ajudá-lo a ultrapassar as suas dificuldades.
Mas a simples recolha de dados por si só não é suficiente. Para além dessa primeira fase de observação é necessário igualmente interpretar o que se observa para tomar decisões sobre a ação a desenvolver de seguida. Este é, por exemplo, o caso de um erro cometido. Entendendo o erro como um fenómeno natural no processo de aprendizagem, ele pode constituir um meio rico de informação que nos permite aceder ao raciocínio do aluno, dificilmente conseguido por outras vias.
Vejamos um exemplo concreto. Suponhamos que estávamos a trabalhar a competência essencial para o 2º ciclo, no domínio dos números e do cálculo:
O reconhecimento dos conjuntos dos números inteiros e racionais positivos, das diferentes formas de representação dos elementos desses conjuntos e das relações entre eles, bem como a compreensão das propriedades das operações em cada um deles e a aptidão para usá-las em situações concretas. (DEB, 2001, p. 61)
E a tarefa que tínhamos proposto aos alunos era a seguinte:
Fig. 1 Tarefa para o 2º ciclo (adaptado de NCTM, 1991)
Se um aluno responder E ou F, que tipo de raciocínio estará ele a fazer? Que possível razão poderá levá-lo a pensar deste modo? Avançaríamos com a hipótese explicativa de que este aluno tem ainda a ideia que o produto entre dois números é sempre um valor que é maior que qualquer um dos factores, concepção aliás construída quando se trabalha a multiplicação apenas com números naturais. Caso o aluno responda A, é mais difícil formular uma razão. Podemos contudo admitir que o aluno não pensou na multiplicação, mas antes na subtração. É evidente que o professor somente poderá avançar com hipóteses explicativas e posteriormente na interação que estabelecer com o aluno pode confirmá-las ou não. Mas é um ponto de partida sem o qual não é possível avançar com uma ação no sentido da regulação.
Questionamento
Naturalmente que após a recolha de dados e a sua interpretação, a interação a desenvolver pelo professor junto do aluno poderá ser concretizada através de questionamento. O colocar questões por parte do professor tem diversos objetivos, como seja orientar o raciocínio do aluno para uma direção que dê frutos, permitir que o próprio identifique o erro; contribuir para o desenvolvimento da capacidade de autoavaliação regulada do aluno, entendida como um processo mental interno através do qual o próprio toma consciência dos diferentes momentos e aspectos da sua atividade cognitiva (Santos, 2002).
Apresentamos de seguida dois extractos de aula. O primeiro diz respeito a uma aula de 11º ano em que os alunos estão a estudar a variação de funções. A interação do professor vai no sentido de dar pistas para o trabalho autónomo a desenvolver pelos alunos:
Aluno: Stora, é assim?Professora: É assim? O que é que tu achas?Aluno: Acho que não.Professora: Então qual é a tua proposta?Aluno: Eu acho que tem a ver com o gráfico.Professora: Se tu estás com dúvidas sobre qual é a influência do 5, a calculadora serve para tu experimentares.Aluno: Não consigo.Professora: Já experimentaste na calculadora com outros valores? Experimenta fazer isso. (Santos, 2000, p. 477)
A segunda situação, que de seguida apresentaremos, diz respeito a uma aula do 8º ano em que os alunos em pequenos grupos estão a resolver um problema com utilização do Teorema de Pitágoras. Dois alunos demonstram que não tinham ainda percebido o conceito de raiz quadrada. A professora, de acordo com o tipo de alunos em presença, opta por uma estratégia particular para que um dado raciocínio desviante seja corrigido pelos alunos:
Como é frequente acontecer, pensavam que a raiz quadrada de um número é metade desse número.Pareceu-me que era o momento adequado para tentar que os alunos compreendessem bem esta noção. Por momentos hesitei na forma como o poderia fazer naturalmente sem que se tornasse pesado, de um modo que os pudesse interessar (…)Aluno: Stora, temos aqui uma dúvida. Não sabemos resolver este problema. Diga-nos lá como é que isto se faz.Uns minutos antes tinha reparado que trocavam números de telefone e decidi aproveitar essa “deixa”. Ocorreu-me então que inventássemos o “jogo dos números de telefone”. Pedi ao Miguel que digitasse na calculadora o seu número de telefone e, em seguida, usando a tecla correspondente, determinasse o valor da respectiva raiz quadrada. Não achou nada de interessante e esclarecedor e perguntou:Aluno: Para que é que isto serve? Que números são estes? Isto não tem nada a ver com o meu número de telefone, não percebo nada disto.Sugeri-lhe que multiplicasse o número obtido por si próprio, usando a memória da máquina para seu auxílio.Aluno: Que grande complicação! – exclamou.Terminado o cálculo, fi-lo reparar que o valor obtido era aproximadamente o seu número de telefone. Seguiu-se uma reação de entusiasmo (…) Fizemos mais alguns exemplos (…) Numa aula posterior, pedi-lhes que explicassem à turma o jogo que tinham inventado com a minha ajuda (…) Pela forma como o explicaram aos colegas fiquei convencida de que reconheciam a relação entre raiz quadrada e o quadrado de um número. (Ponte et al., 1997, p. 11-12)
Frequentemente o questionamento levanta dificuldades ao professor. Por um lado, é difícil não darmos a resposta, muitas vezes fortemente pressionados pelos alunos, por outro, porque é necessário encontrar a boa pergunta, aquela que permite levar o aluno ao “bom destino”. Mas se os alunos são diferentes entre si, nomeadamente nos processos cognitivos de aprendizagem, como saber se uma dada pergunta é a mais pertinente de colocar a um dado aluno, num dado momento? Certamente que a resposta a esta pergunta passa pela intencionalidade do professor em procurar compreender como pensa o aluno, possivelmente tarefa mais facilitada à medida que aumenta a sua experiência profissional.
Dar feedback aos alunos
Uma forma rica de desenvolver uma avaliação reguladora da aprendizagem é permitir que o aluno aperfeiçoe uma primeira versão de um trabalho realizado, podendo assim repensar a situação. Para que esse trabalho possa ser mais formativo, o professor poderá comentar a primeira versão, uma vez mais respeitando o pressuposto que o professor é um orientador da aprendizagem e não aquele que aponta as respostas certas. Assim, considera-se que um comentário que sirva a avaliação reguladora deverá apresentar algumas características, como seja:
- ser claro, para que autonomamente possa ser compreendido pelo aluno; - apontar pistas de ação futura, de forma que a partir dele o aluno saiba como prosseguir;
- incentivar o aluno a reanalisar a sua resposta;
- não incluir a correção do erro, no sentido de dar ao próprio a possibilidade de ser ele mesmo a identificar o erro e a alterá-lo de forma a permitir que aconteça uma aprendizagem mais duradoura ao longo do tempo;
- identificar o que já está bem feito, no sentido não só de dar autoconfiança como igualmente permitir que aquele saber seja conscientemente reconhecido.
Uma vez mais apresenta-se de seguida um exemplo concreto. Suponhamos que estávamos a trabalhar a competência essencial para o 3º ciclo, no domínio da geometria:
A aptidão para visualizar e descrever propriedades e relações geométricas, através da análise e comparação de figuras, para fazer conjecturas e justificar raciocínios. (DEB, 2001, p. 63).
A tarefa que tínhamos proposto aos alunos era a que a seguir se apresenta. É de fazer notar que estes alunos não tinham ainda tido contacto com a desigualdade triangular:
Fig. 3 Resolução apresentada por um grupo de alunos (Adaptado de Kroll, Masingila & Mau, 1996)
Imaginemos então que nos propúnhamos comentar este trabalho dos alunos. O que diríamos? De acordo com as características atrás apontadas, não vamos identificar os erros, isto é, identificar quais os casos que não vão dar triângulos, mas antes escrever um comentário que permita ao aluno saber como prosseguir. Uma hipótese possível é sugerir que o aluno desenhe alguns triângulos. Mas dizer apenas isto não basta. O que aconteceria se ele escolhesse diversos casos todos eles correspondentes a possíveis triângulos? Evidentemente que acabaria por desistir e não teria avançado em nada na sua aprendizagem. Assim, é de lhe propor que tente desenhar alguns casos que nós próprios vamos indicar, escolhendo situações possíveis e outras não. Podemos igualmente sugerir que depois de algumas experiências volte a pensar de forma a ver se já está em situação de formular alguma conjectura e, consequentemente, de aperfeiçoar o seu trabalho.
Ainda da análise da resposta apresentada pelos alunos verificamos que foi utilizada uma estratégia muito útil em Matemática. Falamos da forma organizada como fizeram a contagem de todos os casos a partir da variação possível dos valores de a, b e c. Este facto merece um comentário de valorização da estratégia seguida de modo que numa outra situação análoga que surja no futuro os alunos possam voltar a aplicar a mesma estratégia, agora de forma ainda mais consciente da sua adequação.
Este exemplo é ainda uma ilustração do que referimos no princípio deste artigo no que respeita à incompletude. Note-se que a propriedade entre os lados de um triângulo surge como um resultado obtido pelos alunos e não como algo que se aprendeu antes, eventualmente de forma descontextualizada e, como tal, sem especial significado e relevância para o aluno. Deste modo, este conhecimento foi adquirido, muito embora tenha sido a partir de uma situação em que o principal foco era o desenvolvimento de competências.
A concluir
As novas orientações curriculares para o ensino básico, em particular, o novo entendimento dado ao currículo, perspectivando-o como um conjunto de aprendizagens e competências, veio trazer novos desafios aos professores e alunos, de forma a constituir-se uma realidade de sala de aula adequada aos fins propostos. Seguindo um entendimento de competência como um saber em ação, que pode ser desenvolvido apenas através de situações complexas, torna-se imprescindível que o professor proporcione contextos favoráveis a tal desenvolvimento.
No que respeita ao ensino e aprendizagem da Matemática ao longo de todo o ensino básico, as competências matemáticas desenvolvem-se através da vivência de experiências matemáticas ricas e diversificadas e da reflexão que sobre elas se desenvolvem (DEB, 2001). Entendem-se por experiências matemáticas de aprendizagem situações que aos olhos dos alunos são não rotineiras e que apresentam certo nível de complexidade. Entre elas, podemos ter a resolução de problemas, tarefas de investigação, realização de projetos e jogos.
Se tivermos presente, por um lado, o significado de competência e, por outro, as recentes orientações relativas à avaliação, concluímos que avaliar competências é sobretudo entendido como um processo regulador da vivência dos alunos durante as referidas experiências de aprendizagem. Assim, falamos de um processo intencional e continuado, que vai acontecendo no dia-a-dia da sala de aula e que é marcado por um conjunto de orientações das quais destacamos: (i) desenvolver-se num ambiente de confiança, onde errar é visto como natural e não penalizador; (ii); privilegiar-se uma observação formativa em situação e no quotidiano; e (iii) favorecer-se a metacognição como fonte de auto-regulação.
Estamos conscientes que esta visão de avaliação rompe com um entendimento mais tradicional que a associa à medida e à classificação e em que as principais preocupações se relacionam com a procura de objetividade e de justiça (conceitos estes totalmente desprovidos de sentido numa avaliação reguladora das aprendizagens). É certo que o sistema educativo impõe a existência de uma avaliação/classificação em certos momentos do ano letivo. Mas quanto melhor for desenvolvida a avaliação reguladora, onde se não exclui o desenvolvimento da auto-avaliação regulada, mais aprofundadamente o professor conhece os seus alunos, e eles próprios conhecem e compreendem os critérios de avaliação. Fica assim criada uma situação em que os juízos de valor são mais fundamentados no conhecimento, reduzindo-se naturalmente a angústia e a incerteza dos momentos de classificação.
A situação descrita pressupõe mudanças de concepções e de práticas. Sabemos que tal não acontece de um momento para o outro, como por magia, nem tão pouco por estar legislado. As mudanças em educação fazem-se por aproximações sucessivas, através de um trabalho faseado, onde os balanços, as reflexões e os reajustes decorrentes, se vão procedendo passo após passo. Falar-se de mudanças de prática em avaliação é ainda mais exigente, dada toda a visibilidade social que a mesma comporta. Muitas são as pressões a que os professores estão sujeitos na sua prática profissional, nomeadamente vindas da sociedade em geral e dos encarregados de educação, em particular. Assim, perante a complexidade e dificuldade de tal empreendimento, sugere-se como estratégia facilitadora o desenvolvimento de um trabalho colaborativo entre professores, onde é possível um apoio mútuo e a construção de um sentido comum partilhado de avaliação, de uma responsabilidade partilhada e emancipada, que permite aos professores reelaborarem o currículo, e ainda de uma ética de responsabilidade colegial, que passa pela definição conjunta de prioridades e objetivos comuns que orientam as escolhas individuais.
Estamos assim, mais uma vez, perante um enorme desafio que se coloca aos professores de Matemática! Mas não será a profissão de professor exatamente isso?
Referências
DEB (2001). Currículo nacional do Ensino Básico. Competências essenciais. Lisboa: DEB, ME.
Decreto-Lei nº 6/2001, Diário da República, I Série A, 18 de Janeiro de 2001.
Despacho Normativo nº 30/2001, Diário da República, I Série B, 19 de Julho de 2001.
Kroll, D.; Masingila, J. & Mau, S. (1996). Grading cooperative problem solving. In D. Lambdin; P. Kehle & R. Preston (Eds.), Emphasis on assessment. Readings from NCTM’s school-based journals (pp. 50-57). Reston, Virginia: NCTM.
NCTM (1991). Normas para o currículo e a avaliação em matemática escolar. Lisboa: APM e IIE. (original em inglês, publicado em 1989)
NCTM (2000). Principles and standards for school mathematics. Reston, VA: NCTM.
Perrenoud, P. (1999). Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: ARTMED Editora. (obra original em francês, publicada em 1997)
Ponte, J. P.; Costa, F.; Lopes, H.; Moreirinha, O.& Salvado, D. (1997). Histórias da aula de Matemática. Lisboa: APM.
Santos, L. (2000). A prática lectiva como atividade de resolução de problemas: Um estudo com três professoras do ensino secundário (tese de doutoramento, Universidade de Lisboa). Lisboa: APM.
Santos, L. (2002). Auto-avaliação regulada: porquê, o quê e como? In P. Abrantes & F. Araújo (Coord.), Avaliação das aprendizagens (pp. 75-84). Lisboa: DEB, ME. Short, E. (1985). The concept of competence: Its use and misuse in education. Journal of Teacher Education, March-April, 1-5.
Westera (2001). Competences in education: A confusion of tongues. Journal Curriculum Studies, 33(1), 75-88.
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