Fraco consolo
Pedro Mexia
Cinema de personagens, de actores, de olhares e gestos, o cinema de Sang-soo propõe-nos uma forma radical de perspectivisimo.
O Rohmer coreano? O epíteto é conhecido, talvez útil, mas não exacto. Hong Sang-soo (Seul, 1960) gosta de histórias conversadas, de amores e desamores entre rapazes e raparigas, joga com a comédia sem fazer comédias, trabalha com equipas pequenas, concebe narrativas minuciosas. Mas o seu cinema é mais sombrio, mais lascivo, mais agnóstico do que o de Rohmer; é mais anarquicamente escrito, com coloquialismos, banalidades, discursos hesitantes, fracturados; e os seus “contos morais” são, digamos, amorais, ou de uma moralidade ambígua, fugaz, inconclusiva.
Vi os quatro Sang-soos que tiveram estreia portuguesa, “Noite e Dia” (2008), “Noutro País” (2012), “Sítio Certo, História Errada” (2015), “O Dia Seguinte” (2017). E entretanto vi também os iniciais e extraordinários “O Dia em que um Porco Caiu ao Poço” (1996), “O Poder da Província de Kangwon” (1998) e “A Virgem Desnudada pelos seus Pretendentes” (2000), além de uns quantos mais recentes. Fiquei com vontade de ver tudo, mas não é fácil, são vinte e três longas em vinte e três anos. Felizmente, durante Dezembro e Janeiro teremos essa oportunidade, porque a Cinemateca programou uma retrospectiva integral: “As Variações Hong Sang-soo”.
“Noite e Dia” (2008), de Hong Sang-soo
Podemos assim regressar a estas personagens, estranhos
estrangeiros, iguais a nós, atreitos às paixões tristes, ao tédio, ao
ciúme, à inveja. Têm vinte e muitos, trintas, quarentas. Há muita gente
do cinema, cineastas, estudantes, actrizes, muita autobiografia. Os
homens são cultos, desnorteados, uns trastes, alguns; as mulheres tendem
a ser enigmáticas, sofridas, lúcidas. Encontram-se uns com os outros na
rua, em apartamentos, universidades, hotéis, galerias de arte, cinemas.
E mantêm longas conversas “desinibidas” em restaurantes, todos bem
bebidos de cerveja e soju, declarativos e poéticos, confessionais e
hipócritas, como num Ozu sem cerimónia. Se as situações e os ambientes
são invariavelmente realistas, quase documentais, as peripécias
mostram-se arbitrárias ou improváveis, baseadas em equívocos, fugas,
confusões. E a “realidade”, bem como a cronologia, vai sendo
desconstruída em variações, duplicações, elipses, sonhos,
desmultiplicação de pontos de vista, “flashbacks”, personagens
fisicamente parecidas com outras, personagens diferentes interpretadas
pela mesma actriz, cinema dentro do cinema. As variações Sang-soo já
foram comparadas ao “Rashomon” de Kurosawa, por causa das diferentes
versões da mesma história, e é isso mesmo, um “Rashomon” da vida
privada, em registo lúdico, melancólico. Mas Hong Sang-soo invoca também
o exemplo de Cézanne, artista que pintava obsessivamente o mesmo
objecto porque um objecto nunca é, sempre que a ele regressamos, o mesmo
objecto.
Cinema de personagens, de actores, de
olhares e gestos, o cinema de Sang-soo propõe-nos uma forma radical de
perspectivisimo dramático. Famoso por escrever diálogos de manhã, antes
da rodagem, descreve de preferência os comportamentos titubeantes, o
desconforto, a frustração, a decepção. A uma tensão segue-se uma
rejeição a que se segue uma ofensa a que se segue um segredo. Ou o
inverso. Um pára-arranca de contradições, estimulado pelo método de
escrita e pelo trabalho com o elenco. E os actores entregam-se
heroicamente a estas personagens pouco heróicas que alimentam projectos
difusos, rememoram traumas antigos, fogem às responsabilidades,
contradizem-se, enervam-se, desconversam, dizem meias-verdades e
mentiras inteiras. Os planos demorados, sem campo-contracampo (mas com
zooms implacáveis) dão outra espessura aos egoísmos e aos agravos. E se a
torrente de palavras é uma tentativa de justificação, são mais os
passos em falso, os recuos tácticos, as figuras tristes. Uma comédia de
enganos, mais do que uma tragédia de certezas.
No
cinema de Sang-soo, a opacidade humana é transmitida pela decomposição
da psicologismo em formas meio codificadas e meio anárquicas daquilo a
que Erving Goffman chamou “a apresentação do eu na vida quotidiana”. Um
“eu” social, mais do que interior, um eu-para-os-outros que nunca
verdadeiramente conhecemos como o “verdadeiro eu” de alguém, até porque
quase não temos informações, apenas versões, autoformuladas, e muitas
vezes desmentidas por terceiros. As pessoas querem seguir os seus
desejos mas não se querem comprometer. Há um choque entre a vontade e a
convicção, entre a verdade e os factos. E, a haver uma moralidade, é a
moralidade disfórica enunciada em “Recordando a Porta Giratória” (2002):
“Já que é difícil sermos humanos, tentemos ao menos não ser monstros.”
No
cinema de Sang-soo, a opacidade humana é transmitida pela decomposição
da psicologismo em formas meio codificadas e meio anárquicas daquilo a
que Erving Goffman chamou “a apresentação do eu na vida quotidiana”. Um
“eu” social, mais do que interior, um eu-para-os-outros que nunca
verdadeiramente conhecemos como o “verdadeiro eu” de alguém, até porque
quase não temos informações, apenas versões, autoformuladas, e muitas
vezes desmentidas por terceiros. As pessoas querem seguir os seus
desejos mas não se querem comprometer. Há um choque entre a vontade e a
convicção, entre a verdade e os factos. E, a haver uma moralidade, é a
moralidade disfórica enunciada em “Recordando a Porta Giratória” (2002):
“Já que é difícil sermos humanos, tentemos ao menos não ser monstros.”
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
E-Expresso Revista, 7 de Dezembro de 2019
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