quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Poesia, substantivo feminino




Dizemos tantas vezes que falamos a língua de Camões, mas porque não dizer que escrevemos na voz de Maria Teresa Horta, de Natália Correia ou de Sophia de Mello Breyner Andresen? Estas poetas fazem-no todos os dias.

Afinal, a poesia é um substantivo feminino. A palavra também, que engraçado. Coincidência? Não quando somos o país de Florbela Espanca, Adília Lopes, Filipa Leal, Ana Luísa Amaral, Rosa Alice Branco, Alice Vieira, Maria do Rosário Pedreira e tantas, tantas outras mulheres ao lado de quem qualquer adjetivo cai manso, por terra. A poesia não é uma arte morta nem é a palavra esquecida. A poesia continua a ferver nas veias das mulheres portuguesas, que a escrevem, que a leem, que a declamam. Continuam a nascer movimentos poéticos, associações da palavra dita; há, por esses bares em caves cheias de corações, noites em que a poesia é a moeda corrente. E enquanto existir quem a escreva, enquanto existir quem a leia, enquanto existir quem a declame mas, sobretudo, enquanto existir quem a sinta, não há poesia que morra.

Estas são as poetas que estão, hoje, na ponta da nossa língua.



Andreia C. Faria



Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração, edições Artefacto, 2015
Haveria árvores em vez de homens
no sentido em que os homens crescem
no lugar das árvores, ao invés das árvores
Fossem as árvores casas a desmontar e esquecer
como a cabeça que dói, cresceríamos
árvores de pernas para o ar, ramos
lutando no sentido do céu, o sentido da cabeça,
esse, para baixo, mais fundo
na morte, e ainda os cabelos e as memórias
irrompendo
da armação de osso por onde hão-de espreitar
arqueólogos de dedos translúcidos 
Haveria árvores em vez de homens
A cabeça que pouso
no reduto da árvore ausente
é ao invés da árvore uma casa
descendente, com o sentido de um jarro
esvaziado na terra

Catarina Nunes de Almeida
Bailias, edições Deriva Editores, 2011

Cântico das nervurasSão tão largas as noites
para a concisão de um corpo.
Tão escuro o sorriso que as pernas abrem
ao mundo.
E no entanto animal que passe
aloira-se nas águas e geme
de uma alegria que tem flores e frutos.

Rosa Maria Martelo
Siringe, edições Averno, 2017

A seringa recolhe, transporta, inocula.
Mais perto do pânico da ninfa fugitiva,
o inglês tem a palavra syringe. Cânulas, canas,
Syrinx em fuga na margem do rio, mudada
na forma dos caniços, nas canas ligadas da flauta de Pã.
Mas há outra siringe, um órgão de tubos
na garganta das aves. Dizem que encerra afinidades
com os sons em volta e reproduz as frequências ouvidas,
que as refaz por simpatia.
O mesmo pathos, quer dizer, um mimeógrafo
sonoro à entrada dos pulmões; túnel onde passa o ar,
o sangue, vento; alguma coisa das nuvens.

Marta Chaves
Varanda de Inverno, edições Assírio & Alvim, 2018

ÚLTIMA HORA
Sempre tive o pressentimento
de que morreria alvejada
por uma bala perdida.

Aconteceu hoje numa cidade
onde nem sequer estava,
num tiroteio que não vi.

Susana Araújo
Dívida Soberana, edições Mariposa Azual, 2012

SPREAD
A colcha branca conhece o lucro do
diluído acervo que se estende anguloso
sobre mar incerto. Reúne no húmido centro
os resultados do nosso câmbio (como aliás
ficou demonstrado em extrato integrado)
Na performance da métrica que
nos torna igual à diferença entre
o custo do capital (total) e a reposição do
seu investimento (impossível), arquejam
dobradas as tuas pernas dispersas
partidas, abaladas (i.e. das minhas
já desenlaçadas).

Tatiana Faia
Um Quarto em Atenas, edições Tinta da China, 2018

Aula de arqueologia (excerto)
não, ela era bem como tu
como mais ninguém foi depois ou é ou virá a ser
e tu procuras ainda a última cara
a promessa do encaixe da mão no perfil
e isso acabou há tantos anos
foi antes mesmo desta cidade
um facto para ser coberto
por ruínas e areias e novas construções e desenterrado
quando alguém voltar para tactear
entre as omoplatas e a cavidade torácica
o que agora está descomposto
e foi esta coisa viva:
o corpo que tu usaste 

Teresa M. G. Jardim
Jogos Radicais, edições Assírio & Alvim, 2010

Pão para a boca
Livros
e doce de amoras – o teu pão
para a boca,
não é o meu:
o meu pão é seco,
soco,
na cara
as palavras
escritas, um pouco antes.

Raquel Nobre Guerra
Senhor Roubado, edições Douda Correria, 2016
Uma vez ofereceste-me bananas
flores para ti, vinha escrito.
Percebo bem a inutilidade da poesia
como de resto a literatura que finge
a mínima desordem dos mundos
o que importa é fingir uma pose.
Explico.
O mais extremo acto de egoísmo:
ter a dimensão própria da caricatura
e endossá-la aos outros.
O que toca a afinal e a quem, que sejamos sinistros?
E o amor um candeeiro de rua frouxo que à nossa passagem se desliga.
Dou conta dos perecíveis.
De ti sabe-se que tinhas um jeito especial
de dar bailinho aos deuses com as mãos
enquanto eu de nariz espetado nesse cima
preferia o abandono onde nada me faltava.
Entendo agora que as bananas dormem com as tuas mãos debaixo da terra e que o nosso amor flutua ainda na calcite.
O mundo, seja como for, cabe nisto.
E eu corro para casa com um bouquet de flores mas tu não estás.
Nada que não estivesse previsto,
heartbreakers, love comes in spurts.

Cláudia R. Sampaio
Ver no escuro, edições Tinta da China, 2016

Tragam-me um homem que me levante com
os olhos
que em mim deposite o fim da tragédia
com a graça de um balão acabado de encher
tragam-me um homem que venha em baldes,
solto e líquido para se misturar em mim
com a fé nupcial de rapaz prometido a despir-se
leve, leve, um principiante de pássaro
tragam-me um homem que me ame em círculos
que me ame em medos, que me ame em risos
que me ame em autocarros de roda no precipício
e me devolva as olheiras em gratidão de
estarmos vivos
um homem homem, um homem criança
um homem mulher
um homem florido de noites nos cabelos
um homem aquático em lume e inteiro
um homem casa, um homem inverno
um homem com boca de crepúsculo inclinado
de coração prefácio à espera de ser escrito
tragam-me um homem que me queira em mim
que eu erga em hemisférios e espalhe e cante
um homem mundo onde me possa perder
e que dedo a dedo me tire as farpas dos olhos
atirando-me à ilusão de sermos duas
novíssimas nuvens em pé. 

Madalena de Castro Campos
La Mariée Mise à Nu, edições Companhia das Ilhas, 2017

Hora de inverno
Telefonava à noite.
Chamadas internacionais.
Não dissera a ninguém onde estava.
Fazia de conta que continuava em Lisboa,
e combinava, às vezes, vagos encontros para
a semana seguinte.
Iria faltar.
Depois de desligar, saía pelas ruas à procura
de um bar.
Entre o que se comprava e o que se vendia,
acabava por cair na troca directa.
A cerveja pela companhia,
o whisky pela cama.

Rute Castro
O sangue das flores, edições Artefacto, 2014
e tu aí
na casa que permanece com as suas dores de doença na construção,
a casa espreita a saudade e guincha o fresco das árvores na companhia
do esquecimento, 
agrego os sentidos, agrego tudo e junto a confrontos dessa voz
comigo, e afinal o frente a frente dá-se despido,
e afinal não nos deixam sem que nos caia o paraíso, que se desmanche, 
e afinal ganhar é esse corte a meio.

Margarida Vale do Gato
Lançamento, edições Douda Correria, 2016
Margarida
A nossa solidão é esta avenida decotada
do passeio do acaso, furtiva e escancarada
artéria tantas vezes paralela ao coração
onde um almirante não serve a arquitetura
onde sobe a miséria do terminal do elétrico
até à igreja fronteira à sopa dos pobres
efémeros sentinelas armando cartões
nas fachadas das lojas, trastes, artigos
de ocasião (apanham-nos de dia noivos
investindo num projecto de família).
O nosso é este meio de solidão que se carrega
de qualquer coisa que não é bem perpétua
atmosfera de névoa nem sujidade, que também
é terna, pena suspensa (corvos de Lisboa, naus
gastas), saudade, porque não, sentimento
de povo sem pátria desmentido; crer creio
nisto que na indigência e vício coexiste a gente
dá-se e da carência faz-se uma disciplina às claras
e por muito pouco desprende-se quase nada
que se tem 

Matilde Campilho
Jóquei, edições Tinta da China, 2016

Avarandado
Quarta nota para
a manhã infinita:
Afinal o grande amor
Não garante nada mais
Do que as 12 graças
Desdobradas pelos
Corredores do mundo
Agora isso é mais
Do que suficiente
E apesar dos bofetões
Do tempo invertido
Apesar das visitas
Breves do pavor
A beleza é tudo
O que permanece.

Sónia Balacó
 Constelação, edições Mariposa Azual, 2015
pensei
que a liberdade vinha com a idade
depois pensei
que a liberdade vinha com o tempo
depois pensei
que a liberdade vinha com o dinheiro
depois pensei
que a liberdade vinha com o poder
depois percebi
que a liberdade não vem
não é coisa que lhe aconteça
terei sempre de ir eu 
Referência: (2018). Inspiring Women - Poesia, substantivo feminino, Vogue Portugal. Retrieved 25 December 2019, from https://www.vogue.pt/poesia-substantivo-feminino?



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