terça-feira, 17 de dezembro de 2019

+ Leitur@s | Os tempos sujos, segundo Vargas Llosa




Vargas Llosa é alguém que, nos seus meneios sociais e serôdia ambição de carreira política, se sabe fazer detestar. É também um gigante da literatura, que merece ser lido sempre pelo que escreve. Deu-nos, aos seus leitores devotos, algumas das grandes obras do nosso tempo. Está bem, nem sempre é assim: no meu caso, uma vez desiludido, achei o seu recente “Cinco Esquinas” pretensioso, sem chama, até triste na forma. Mas quem escreveu “A Guerra do Fim do Mundo”, mesmo que depois de trabalho com Ruy Guerra, ou antes “A Casa Verde” ou “Conversa na Catedral”, e mais haveria a citar, é um escritor monumental. O seu recente “Tiempos Recios” (imagino que se traduza por “Tempos Difíceis” ou “Tempos Sombrios”) restitui-nos à escrita de fôlego.

Num livro anterior, “A Festa do Chibo”, Vargas Llosa tinha descrito o sangrento regime de Trujillo na República Dominicana. Este “Tempos Difíceis” regressa a um tema próximo, investigando o golpe na Guatemala contra o Presidente Jacobo Arbenz, em 1954, e o que se seguiu. Em modo de reportagem, recupera personagens reais, como Sam Zemurray, o dono da United Fruit, Edward Bernays, o responsável da empresa pela campanha na opinião pública contra um governo que se limitara a exigir-lhe que pagasse imposto, o embaixador John Peurifoy, que coordenou a operação de derrube do regime, o generalíssimo Trujillo e Somoza, os seus aliados, ou ainda Johnny Abbes García, o chefe dos serviços da informação militar dominicana que vai assassinar o ditador que substituiu Arbenz, ou ainda Marta Borrero Parra, chamada Miss Guatemala, que perpassa pela vida de vários dos personagens desta história verdadeira. Acrescenta-lhes um agente da CIA a quem chama Mike, esse nome serve, como outro qualquer, para contar o que se passou antes e depois do golpe e como estes personagens se envolvem no turbilhão de uma história sangrenta e sem remissão. São páginas notáveis de um grande escritor.

Vargas Llosa também regista aqui uma mensagem política. Como explica numa entrevista, o golpe da United Fruit, da CIA e do Departamento de Estado contra Arbenz “levou muitos jovens latino-americanos, eu entre eles, a desacreditar na democracia e a pensar no socialismo”. “Se os Estados Unidos, em vez de derrubarem Árbenz, tivessem apoiado as suas reformas, provavelmente a história da América Latina seria outra, provavelmente Fidel Castro não se teria radicalizado e tornado comunista, nem Che Guevara, que estava na Guatemala nesse momento”, lamenta. O golpe “atrasou dezenas de anos a democratização do continente e custou milhares de mortos, mas contribuiu para popularizar o mito da revolução armada e do socialismo em toda a América Latina”, escreve na última página do livro. Há neste drama uma história de vida e ela é irremediável, o golpe foi o que foi e a lição foi sentida em todo o continente. Mas o que o livro nos traz de novo é um imponente retrato das pessoas que foram atropeladas pela história.

Francisco Louçã, Expresso, 7 de dezembro de 2019










Mario Vargas Llosa é jornalista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário peruano, e já atuou como professor em diversas instituições de ensino superior nos Estados Unidos e em países europeus. Autor do conhecido “Travessuras da menina má”, o escritor conquistou o Prémio Nobel de Literatura em 2010 e é considerado um dos mais importantes escritores da atualidade.




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