domingo, 15 de dezembro de 2019

A tortura da felicidade






Nos dias de hoje, é uma obrigação. Não há para onde virar-se sem que ela seja a medida de todas as coisas. É o que desejamos e o que, por seu turno, nos impõe uma sociedade individualista e positiva até à náusea.

Texto: Luciana Leiderfarb | Ilustrações: Helder Oliveira



Acordar infeliz pode ser um desafio nos dias de hoje. Sai-se da cama com dificuldade, respira-se fundo e olha-se pela janela. O dia cinzento confirma o estado interior, aquela inexplicável dor de alma e desalento que de vez em quando irrompem sem razão aparente. Essa gota de autocomiseração à qual todos temos direito. Não é depressão, mas e se fosse? Então, por favor, não se atreva a abrir o Facebook ou o Instagram. Porque, se o fizer, será bombardea­do com felicidade. A felicidade será uma arma de arremesso usada contra si: festas, sorrisos, ginásios ou corridas às 7h da manhã, pores do sol, paisagens paradisíacas, pratos tentadores, causas que demonstram o grande compromisso com o mundo de quem as defende, um desfrutar da vida até ao tutano. Ah! E de preferência não entre numa livraria. Encontrará prateleiras cheias de volumes — uma potente indústria de milhares de títulos — a explicar quão simples é ser-se feliz, e não hoje ou amanhã, mas sempre, basta seguir esta lista de tarefas, agradecer duas vezes por dia, seguir os preceitos do mindfulness, procurar dentro de nós aquela qualidade ou força que não sabíamos que lá estava.

Já agora, também não veja os jornais do dia. É possível lá estar uma notícia sobre o ranking de felicidade entre países — e quem vive na Finlândia, primeiro lugar em 2018, e ainda assim se sente triste e desolado, verá o absurdo da vida em todo o seu esplendor. Só mais um conselho: se tiver o impulso de partilhar no Facebook o seu real estado de ânimo, nublado como o dia, não o faça. Não seja spoiler, é extremamente antipopular. Terá poucos likes ou, no máximo, um ou dois emojis de ar desanimado. Se não é capaz de ser feliz, ao menos não o mostre. Ninguém quer ter essa imagem de si.

Vivemos numa era em que a procura da felicidade se tornou uma obrigação. “Seja feliz” é a exigência em voga, “és feliz?” a interrogação mais comum. Produtividade, proatividade, resiliência, positividade tornaram-se as grandes virtudes contemporâneas. A felicidade tomou conta dos nossos maiores anseios e a infelicidade passou a ser sinónimo de fracasso. O que antigamente — digamos, há 40 anos — era um estado só alcançado em momentos específicos, em agudo contraste com o resto da vida (e para o qual as condições exteriores pareciam contribuir), hoje é algo desejável em permanência e que se atinge por escolha pessoal, sendo cada um de nós responsável por encontrar dentro de si mesmo as condições da sua própria felicidade, numa espécie de reinado solipsista.

A psicologia positiva, subdomínio da psicologia comum e em franco crescimento desde inícios deste século, autodenomina-se “ciência da felicidade”. Porque se concentra no “estudo daquilo que faz as pessoas estarem no seu melhor e do que faz com que a vida valha a pena ser vivida”, justifica Helena Águeda Marujo ao Expresso. Esta docente na área da psicologia positiva no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa explica que a disciplina investiga, seguindo o método científico, as condições de felicidade, que por sua vez conduzem a uma “maior produtividade, maior saúde e mais longevidade”. Desde o pós-II Guerra, diz, que a psicologia se concentrava nas patologias, no trauma e nas perturbações mentais. Agora inverte-se o caminho, indagando as virtudes humanas, aquilo de que o ser humano é capaz “no seu estado ótimo e criativo”.


“Pode haver países com elevado índice de felicidade onde residem pessoas infelizes”, observa a psicanalista Maria do Rosário Belo

Mas talvez seja útil definir o que é ‘felicidade’ neste âmbito. E felicidade é “uma experiência com elementos subjetivos, complexa, multidimensio­nal, que integra a capacidade de vivermos com mais emoções positivas do que negativas”, sublinha a especialista. Existem dois campos a explorar: o da felicidade hedónica — a capacidade de “promover experiências emocionais positivas, como a gratidão, a esperança ou o otimismo” — e a felicidade eudaimónica [do conceito aristotélico de eudaimonia] — a capacidade de “viver vidas com sentido” e a concretização de objetivos pessoais. “Está provado que quem sente mais gratidão é mais feliz e tem mais saúde. Há consequências concretas desse lado hedónico, porque as emoções positivas diminuem os efeitos das negativas, como por exemplo o excesso de hormonas como o cortisol, potenciando também as faculdades cognitivas.”

Foi em finais dos anos 90 que Martin Seligman, o pai da psicologia positiva, teve o seu momento ‘eureka’. Na altura presidente da American Psychological Association, descobriu que, em vez de a psicologia se ocupar do que há de errado no ser humano, esta deve focar-se no que está certo. Em 2002, proclamava a debilidade do antigo modelo patológico e, dois anos depois, no “Character Streghts and Virtues: A Handbook and Classification”, esboçava o contraponto positivo do clássico “Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais” (DSM) e da Classificação Internacional de Doenças (ICD). “Este manual centra-se naquilo que as pessoas têm de adequado e, mais especificamente, nas forças de carácter que possibilitam uma vida boa. Seguimos o exemplo do DSM e do ICD. A diferença crucial é que o nosso foco de preocupação não é a doença psicológica, mas sim a saúde psicológica”, escrevia Seligman, identificando seis grupos de virtudes: sabedoria, coragem, humanidade, justiça, moderação e transcendência.

A “fórmula da felicidade” por ele enunciada concluía que, se 50 por cento da felicidade advém da genética, os fatores cognitivos, volitivos e emocionais são responsáveis por 40 por cento, sendo que os restantes 10 por cento correspondem a circunstâncias de vida “sem especial relevância”, como o rendimento ou a educação. Resultado: de acordo com a equação de Seligman, a chave da felicidade depende em 90 por cento de aspetos psicológicos e individuais. Em 2014, num artigo para a “Harvard Bussiness Review”, este catedrático da Universidade de Pensilvânia, nos Estados Unidos, relatou uma experiência laboratorial da sua autoria da qual emanava que “um terço dos animais e dos seres humanos submetidos a choques ou ruídos inescapáveis não se deixa abater”. O que faz com que não desanimem?, perguntava. “Em mais de 15 anos de estudo, os meus colegas e eu descobrimos que a resposta é o otimismo. (...) Isso sugeriu como poderíamos imunizar o indivíduo contra o desamparo, ensinando-o a pensar como um otimista.”

A noção de que a aprendizagem do otimismo é o antídoto final e definitivo para o sofrimento humano não deixa de ser sedutora. Mas está a anos-luz do que Sigmund Freud um dia preconizou. No ensaio “O Mal-Estar na Cultura”, o pai da psicanálise não só considera que “as nossas faculdades de felicidade estão já limitadas, em princípio, pela nossa constituição”, como enuncia que o sofrimento humano é constante e tem três procedências: o corpo, condenado à decadência e à aniquilação, o mundo exterior, e as relações com os outros. “Não nos surpreende que o homem já se sinta feliz pelo mero facto de ter escapado à desgraça, de ter sobrevivido ao sofrimento”, regista, não o apresentando exatamente como uma opção ou como um aspeto suscetível de ser anulado.

Por outras palavras, “não há como conceber uma experiência humana que seja só atravessada por momentos felizes”, pontua a psicanalista Maria do Rosário Belo. E a ideia de que se pode cultivar um estado de felicidade permanente “vem da insuportabilidade de viver toda a dimensão humana, é uma defesa contra o sofrimento”. “A tristeza e a alegria resultam de encontro com o mundo. Esse encontro não é perfeito. A vida é imperfeita e tem uma dimensão trágica da qual não se pode fugir”, reflete a especialista, para quem aderir a receitas preconcebidas de felicidade para aplacar a dor “não é diferente de uma bulimia, do alcoolismo, do fanatismo religioso ou de qualquer outra forma de compulsão”. Na base de tudo isto, diz, está a ilusão de suspender o desconforto.



Um pacote de felicidade, sff

Edgar Cabanas Díaz é um psicólogo social que tem criticado a forma como, hoje, a psicologia positiva e afins encaram a felicidade. “Trata-se de oferecer soluções de tipo individual, desvalorizando as condições estruturais e sociais e por meio de uma mensagem empoderadora”, defende. Porém, essa mensagem carrega nas entrelinhas a afirmação de que a infelicidade equivale a ‘simples’ má gestão emocional — incapaz de afastar as emoções negativas, o doente é o único culpado pela sua doença. “Uma ciência da felicidade é algo demasiado soberbo”, opina Edgar Cabanas Díaz, para quem um dos seus efeitos mais nefastos é o de “fomentar a culpa e a ideia de que se a vida não te corre bem é porque não fizeste as escolhas certas”.

Esta visão vai de mão dada com outras terapias e receituários: autoajuda, mindfulness, coaching, léxico que faz parte de um “mercado da felicidade” de marketing agressivo, cuja grande disseminação nos dias de hoje assenta, na verdade, “na ideia de uma felicidade que não se chega a alcançar”. Se esta indústria — que movimenta 4,3 biliões de dólares — estivesse orientada para um produto satisfatório, a felicidade teria pouca repercussão. “É preciso que gere uma narrativa de incompletude, em que a solução conduz a uma nova necessidade e insatisfação, e assim por diante,” comenta o psicólogo, autor do livro “A Ditadura da Felicidade”. Paradoxal? Nem por isso. “Uma sociedade descontente é um caldo de cultivo para que estas mensagens se alastrem — as chaves para salvar-se desde o interior do ‘eu’ quando a sociedade não as proporciona. Não é por acaso que o grande boom tenha acontecido em 2008, com a grande depressão económica”, assevera.

Por outro lado, a evocação da ‘eudaimonia’ é, para Cabanas Díaz, falaciosa. “Com este termo, Aristóteles não pensava no sujeito psicológico e sim no político”, refere, lembrando que a recondução ao indivíduo de toda a responsabilidade pelo seu bem-estar “anula a vertente social e política” deste, esbatendo ideias como a justiça social, o coletivismo ou a igualdade. Não se pense, no entanto, que os próprios partidários da psicologia positiva estão a leste das suas falhas. Helena Águeda Marujo, por exemplo, concede que até há alguns anos o seu movimento dava “pouca importância à contextua­lização”, estando demasiado focado “na pessoa”. E o mesmíssimo Tal Ben-Shahar, o israelita que é o guru da psicologia positiva em Harvard, reconhece que outro dos pilares da sua disciplina, o ‘treino’ das emoções positivas, não funciona sem a existência de sentimentos como a raiva, o medo ou a ansiedade. “A obsessão por ser feliz o tempo todo faz com que as pessoas se sintam miseráveis”, admite.  







E depois estão as medições. Não só a que cada um deve fazer quando, a 20 de março, e desde 2012, se comemora o Dia Mundial da Felicidade, mas a que vem explícita e quantificável país a país no Relatório Mundial da Felicidade, lançado anualmente pelas Nações Unidas. Aqui, em torno de seis variáveis — PIB per capita, apoio social, expectativa de vida saudável, liberdade, generosidade e ausência de corrupção — constrói-se um estudo comparativo capaz de avaliar o bem-estar em 156 países. Olhando para o de 2019, encabeçado pela Finlândia, os Emiratos Árabes Unidos surgem acima da França ou de Espanha. A Guatemala e a Nicarágua são mais felizes do que a Argentina ou a Polónia, e Portugal mais infeliz que estes todos, sendo que os últimos lugares previsivelmente pertencem às nações centro-africanas e ao Afeganistão. “A medição tem subjacente uma pergunta sem resposta: como comparo a felicidade de um chinês com a de um francês? Ou a de um cambojano com a de um norte-americano? O que estamos verdadeiramente a medir?”, questiona Cabanas Díaz. “Pode haver paí­ses com elevado índice de felicidade onde residem pessoas infelizes. Mesmo que todos os parâmetros coletivos de felicidade estejam preenchidos, a felicidade individual pode não acontecer”, observa Maria do Rosário Belo.

Para a socióloga Ana Roque Dantas, “somos socialmente condicionados a procurar, a aparentar e a partilhar felicidade: ser feliz é sinónimo de normal e tem a aura de contágio positivo”. Por outro lado, “os infelizes carregam o estigma da desadequação, do fracasso e da influência negativa sobre o outro”. “A transmissão desta ideia de felicidade surge através de publicações, filmes, publicidade e comunicação social. As pessoas no Ocidente estão como nunca bombardeadas de imagens dos rostos sorridentes de pessoas reais, que constituem solicitações sociais capazes de influenciar a forma de sentir, de expressar e de procurar a felicidade”, escreve num artigo esta docente da Universidade Nova de Lisboa. Isto não acontece, porém, sem que entre em ação o princípio de ‘ajustamento’, como explica ao Expresso o também sociólogo Miguel Almeida Chaves: “Os indivíduos sentem tanto mais satisfação quanto mais entendem que o que desejam está a ser atingido na sua vida concreta. São tanto mais felizes quanto maior a capacidade de ajustar as expectativas às reais condições de concretização.” Para o investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa, essa dinâmica de ajustamento é estrutural, está presente em todo o mundo social e permite que a infelicidade não se generalize, impedindo-nos de desejar o que está fora do nosso alcance. Graças a ela, cada ser humano possui a sua própria noção do que, para si, representa a felicidade.

Em “A Sociedade do Cansaço”, um dos livros mais recomendados de 2010 (e em Portugal lançado em 2014), o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han traça os contornos do que caracteriza o início do século XXI segundo o seu modelo de doença. Assim, enquanto o paradigma anterior era o imunológico, na luta contra as doenças bacterianas e virais — na luta contra um ‘outro’ e a sua rejeição —, o de hoje é o neuronal e debate-se com perturbações como a depressão, a hiperatividade ou o desgaste laboral. “A violência da positividade, resultante da sobreprodução, sobrerrendimento e sobrecomunicação, já não é de natureza viral (...). A depressão é a doença de uma sociedade que sofre de excesso de positividade e reflete uma Humanidade em guerra consigo própria. O sujeito produtivo não está sob o domínio de qualquer instância externa que o obrigue a trabalhar ou que o explore. Ele é senhor e soberano de si mesmo.” O cansaço é o sintoma de uma sociedade em que o homem se enfrenta ‘apenas’ a si mesmo.
Ser feliz, portanto, cansa. Deprime e exaspera, quando muito. Depois de aturada pesquisa, descobrimos que há três saídas possíveis. Foge-se a sete pés de redes sociais, livrarias e jornais. Adquire-se por uns módicos 15 euros através da aplicação Happify, que em oito semanas tem conseguido um aumento significativo da felicidade a 86 por cento dos utilizadores. Ou pega-se num livro, por exemplo do imenso escritor israelita Amos Oz, que faleceu há um ano, e encontra-se uma frase como esta: “Há felicidade no mundo, e o sofrimento não é o seu contrário.”


Semanário Expresso (Caderno principal), 7 de dezembro de 2019
#Semanário2458



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