Fraco consolo
Pedro Mexia
Todas as teorias do humor são úteis, mas nenhuma impugna a veracidade das outras, porque o humor é demasiado complicado
Troçar, caçoar, chasquear, galhofar, mangar, zombetear, etc. O verbo ‘rir’ tem tantos sinónimos quantos os seus modos e registos. Não é sequer forçoso que esteja ligado à comédia, uma vez que há também um ‘riso nervoso’ ou um ‘riso histérico’. O riso, escreve Terry Eagleton em “Humour” (2019), tem qualquer coisa de “desordem física”, desregramento primitivo, reacção infantil, e nisso é semelhante ao medo ou à raiva. Perdemos o controlo do nosso corpo, emitimos sons animais, somos dominados por espasmos e frémitos. Rimos contra a lógica, o interdito, a convenção, porque somos anarquistas linguísticos, desconstrucionistas, dadaístas. Ou rimos por contágio, porque outra pessoa se está a rir ao nosso lado.
Uma das teses de “Humour” é que o riso tem uma dimensão “somática” e uma dimensão “semiótica”, quer dizer, que é físico e linguístico. Todas as teorias do humor (Freud, Bergson, Bakhtin) são úteis, mas nenhuma impugna a veracidade das outras, porque o humor é demasiado complicado. Pode ser uma forma de superioridade, de preconceito, de rebaixamento dos outros, mas também uma consciência “democrática” de que todos somos basicamente iguais, seja qual for o nosso estatuto, sejam quais forem as nossas pretensões. Pode ser uma atitude cínica, imobilista, ou atenta à natureza humana e à reforma das mentalidades (ridendo castigat mores). Pode ser um processo de desestabilização, de demolição, ou pode ficar pela superfície das coisas, pelo estereótipo inócuo, pelo carnaval temporário que depois regressa ao primado da ordem (o que explica que tantos génios cómicos, de Jonathan Swift a Evelyn Waugh, fossem conservadores). Por estes motivos, e outros ainda, as teorias do humor parecem quase sempre menos interessantes do que as técnicas do humor, que nos ensinam como funciona a hipérbole, a incongruência, a ambiguidade ou o quiproquó.
Terry Eagleton, crítico literário e teórico da literatura
Colin McPherson/Corbis via Getty Images
Se “Humour” contribui para o nosso entendimento do
humor, isso terá decerto que ver com o facto de Terry Eagleton, célebre
crítico literário e teórico da literatura, ser um marxista católico.
Podemos ter a impressão de que os marxistas e os católicos sofrem uma
capitis deminutio quanto à comédia, uma vez que tendem a defender que
“não se brinca” com determinadas convicções, as suas convicções; mas há
uma joie de vivre especificamente católica e um sarcasmo hedonista no
marxismo que os textos de Chesterton ou Brecht ilustram bem. Além do
mais, tem graça que um marxista seja católico, ou seja, que acredite
apenas na matéria e também no espírito. Imbuído desse espírito de
contradição, Eagleton lembra as potencialidades “comunistas” e “cómicas”
da Bíblia, nomeadamente as promessas que Jesus faz de inverter todas as
hierarquias e todas as injustiças: “Bem-aventurados vós, os pobres,
porque vosso é o reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes
fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados vós, que agora chorais,
porque haveis de rir. (...) Mas ai de vós que sois ricos! Porque já
recebestes a vossa consolação. Ai de vós, os que agora estais fartos!
Porque tereis fome. Ai de vós, os que agora rides! Porque vos
lamentareis e chorareis”. Já as potencialidades cómicas da política são
evocadas com um famoso exemplo dos tempos soviéticos: “O capitalismo é a
exploração do homem pelo homem; o comunismo é o contrário.”
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
E-Revista Expresso, 1 de novembro de 2019
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