A sociedade continua a encarar o gordo como um ser
inferior. É como se formassem a única minoria sem direito ao véu
protetor da indignação.
Texto: Henrique Raposo | Ilustrações: Aalex Gozblau
O
romance “A Gorda”, de Isabela Figueiredo, arranca assim: “Quarenta
quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia (...) Ainda
penso como gorda. Serei sempre gorda. Sei que o mundo das pessoas
normais não é para mim (...) Mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me
eu, à partida. Conheço bem os meus limites. Aquilo a que posso aceder e o
que me está vedado para sempre. Os aleijados são, como se diz dos
diamantes, eternos.” É um arranque extraordinário, até porque retrata o
gordo como um aleijado, como o grande enjeitado. Não é aleijado segundo
as leis da natureza, mas segundo as leis da crueldade humana. Maria
Luísa, personagem central de “A Gorda” é, no fundo, como Philip de
“Servidão Humana”. Ter peso a mais é como ter um pé a menos; a barriga
proeminente é uma característica percecionada como uma deformação
equiparável a um pé boto. É assim que um gordo se sente perante a
sociedade que o encara como um ser inferior, a sociedade que insiste em
fazer da obesidade uma metáfora sobre falhas morais.
Na
escola da Belle Époque inglesa, Philip é gozado e humilhado pelos
outros rapazes, que não lhe perdoam o pé defeituoso; a piedade não é
natural ao homem, tem de ser aprendida. No Portugal contemporâneo, Maria
Luísa também é destratada como a badocha de serviço. Reparem, por
favor, que estou a usar o presente do indicativo. Uso o presente devido
ao tempo narrativo dos romances, Philip e Maria Luísa estão a sofrer
neste momento. Mas há outra razão: utilizo o presente do indicativo
porque o gordo é, nos dias que correm, o único ideal-tipo que pode ser
abertamente gozado e humilhado em público. O que é espantoso. Vivemos no
meio de uma barragem constante de indignação de grupos e minorias que
recusam ser criticados ou parodiados. Do humor à literatura, há um
policiamento permanente da linguagem que confunde duas coisas: uma coisa
é combater preconceitos e ódios; outra coisa, bem diferente, é
diabolizar críticas, perguntas difíceis e, sim, piadas sobre grupos,
etnias, tribos, minorias ou maiorias.
No ano da
graça de 2019, uma palavra — uma única palavra — é capaz de gerar
acusações, boicotes e despedimentos. Não, não quero neste texto discutir
a razão (ou a ausência dela) deste ambiente de censura e autocensura.
Quero apenas salientar esta perplexidade: numa época que ‘proíbe’ a
paródia e a crítica aos mais diversos grupos e minorias, os gordos
continuam a ser um alvo fácil do escárnio, da paródia e até da
diabolização. É como se os gordos formassem a única minoria sem direito
ao véu protetor da indignação. Porque é que isto acontece? Porque é que,
na sociedade da indignação e da hipersensibilidade, o fat shaming (humilhar o gordo) é uma constante? O que leva um dos grandes comediantes/apresentadores americanos, Bill Maher, a lançar uma fatwa ao gordo, defendendo abertamente o fat shaming? Se tivesse defendido o gay shaming ou black shaming ou jew shaming ou women shaming ou abortion shaming,
a carreira de Maher teria acabado ali mesmo. Então, porque é que recebe
aplausos quando lança os preconceitos mais preguiçosos sobre os gordos?
Porque é que um comediante que recusa criticar ou parodiar atos e
opiniões de algumas minorias é depois tão duro com a própria biologia (e
não com opiniões ou atos) de outras pessoas?
Em
resumo, porque é que o gordo está neste ângulo cego do politicamente
correto? A minha tese é esta: o ódio derramado sobre o gordo é visto
como uma virtude por muitas das narrativas ou ideologias do nosso tempo,
o culto cego da meritocracia e o ambientalismo radical, por exemplo.
O naufrágio do livre arbítrio
Comecemos
pelo culto exacerbado da meritocracia, que isola o livre arbítrio,
colocando-o num vácuo onde só existe essa vontade pessoal, onde o mundo é
a representação dessa vontade, onde não existem forças exteriores como a
genética ou a pobreza. O discurso de Bill Maher é um bom exemplo desta
ilusão: ele reduz a obesidade a uma mera inércia da vontade. É a ideia
de que o gordo é aquela criatura anafada só porque não se esforça. Isto é
um absurdo, como frisou de imediato James Corden numa resposta certeira
a Maher. Bill Maher quis fazer da obesidade uma metáfora dos males da
sociedade americana; acabou por fazer uma metáfora da sua fraca empatia.
É aquilo que falta a esta meritocracia fria e árida que nos apascenta:
empatia.
Há que tentar ver o mundo através dos
olhos e do corpo de um gordo. Neste sentido, haverá poucas coisas mais
ilustrativas do que as memórias de Hilary Mantel. Em “Giving Up the
Ghost”, sentimos o naufrágio do livre arbítrio num oceano tempestuoso de
fluxos hormonais; sentimos a genética a afogar a liberdade de escolha. A
tiroide criou uma nova Hilary. Ela ainda sonhava com a sua velha
magreza, o seu velho eu, mas, quando acordava, tinha de lidar com aquele
avatar descomunal. A tiroide marcou a ferro quente o livre arbítrio de
Hilary, tratou-a como gado sem direito à sua personalidade. Quer dizer, o
livre arbítrio que permite a meritocracia (neste caso, o mérito seria
emagrecer através de dietas e exercício) nada pode contra a biologia,
contra o descontrolo hormonal. É uma questão médica, e não moral.
“Quando engordas, ficas com uma nova personalidade”, ponto final.
Comesse o que comesse, corresse o que corresse, o livre arbítrio de
Hilary não podia travar o inchaço do corpo. A sua liberdade só podia
atuar a jusante, e não a montante, ou seja, a sua pergunta não era “como
posso travar este corpo?”, mas sim “o que fazer para viver e escrever
com este corpo?”. A questão não era se ia mudar de corpo e
personalidade, mas como ia mudar de corpo e personalidade. Pedir a
Hilary Mantel para emagrecer é o mesmo que lhe pedir para mudar de cor
de pele ou de orientação sexual. Ser magro é uma meta que está para lá
do seu livre arbítrio, não é uma questão de vontade, é um facto
biológico.
O ódio derramado sobre o gordo é visto como uma virtude por muitas das narrativas ou ideologias do nosso tempo, o culto cego da meritocracia e o ambientalismo radical, por exemplo.
Além do cerco da genética, não podemos esquecer o cerco
da pobreza. A sensibilidade literária de George Orwell intuiu que o
cansaço animal da pobreza anula quase por inteiro o livre arbítrio do
pobre alquebrado. A ciência moderna está a confirmar esta intuição.
Vejam na HBO o documentário “One Nation Under Stress”, de Sanjay Gupta,
ou leiam na “Nautilus” o ensaio “Poverty is Like a Disease”, de
Christian Cooper. São bons resumos daquilo que a ciência já apurou: a
pobreza é uma condição que altera quimicamente o cérebro; e essa
metamorfose química até pode passar de pai para filho pela via genética.
Como é que isto se opera? O stresse constante causado pelas
preocupações da pobreza soterra o livre arbítrio num fluxo permanente de
ansiedade química que provoca uma implosão antikantiana; o cérebro fica
entupido de stresse da mesma forma que uma artéria fica entupida de
colesterol; pensar racionalmente sobre o futuro torna-se difícil; o
cérebro exige gratificações imediatas, a começar na comida com sal,
açúcar e gordura.
Não aceito a totalidade da tese
de Cooper, isto é, não aceito que a liberdade de pensamento e de escolha
do pobre fica totalmente danificada, isto é, não aceito a ideia da
pobreza como doença terminal e insuperável. O pobre pode subir na vida
através do trabalho e no esforço; o pobre pode lutar contra a obesidade.
Não é impossível, nem sequer é implausível. Mas, sim, é tremendamente
difícil. O livre arbítrio para um privilegiado das classes altas é um
dado à partida. Para um descamisado, um negro do gueto ou do Jamaica ou
um branco do parques de rulotes ou de um bairro clandestino, o livre
arbítrio desobstruído é uma enorme conquista depois de muito esforço
potenciado por uma autodisciplina de nível militar.
Nesta
fase do argumento, muitos contra-argumentarão com o seguinte: mas não é
evidente que há muitas pessoas gordas porque são preguiçosas? Sim, é
verdade. Mas já não há direito à ociosidade? Mesmo que alguns corpos
volumosos sejam de facto o resultado de modos de vida pachorrentos e
gulosos, porque é que isso há de ser motivo de chacota ou censura?
Porque é que se procura equivaler a ética à massa corporal? A gordura versus
magreza não é um debate ético. O magro não é eticamente superior ao
gordo, e vice-versa. O que nos define eticamente não está nem nas
substâncias que comemos nem nas distâncias que corremos; está no
respeito e na empatia que demonstramos pelos outros. Ademais, importa
frisar outro ponto: porque é que ser um gordo ocioso não pode ser uma
escolha pessoal (livre, consciente e responsabilizável) como tantas
outras? Se todos os modos de vida passaram a ser aceitáveis, se até a
poligamia ou zoofilia querem entrar no perímetro da legitimidade, porque
é que um corpo volumoso fruto de um modo de vida ocioso tem de ser
submetido à humilhação da praxe?
“A gordura não é
imoral. Não há uma ligação entre a tua cintura e a tua ética”, diz
Hilary Mantel. Mas a escritora britânica sabe que não é essa a visão da
sociedade. Recorda, aliás, como o cristianismo não criou santos gordos. O
santo é sempre uma esfinge enxuta, porque o santo passa pela
purificação do jejum. O santo e o capitalista do século XXI, diga-se. Já
repararam na imagem padrão do empreendedor do nosso século? É
magríssimo, tal como um santo medieval. É magríssimo devido à sua
devoção pela meritocracia que aplica à mente e ao corpo. É uma inversão
curiosa na imagética do capitalismo.
No século
passado, os velhos comunistas usavam o gordo para criticar o
capitalismo. Nas caricaturas marxistas, o capitalista era sempre um
gordo anafado e decadente que aparecia em claro contraste com os
proletários austeros e enxutos, operários de corpos esculturais,
silhuetas esculpidas por uma ética de trabalho inclemente que esmagaria a
decadência do capitalismo.
Neste século, é o mundo capitalista que denigre o gordo. Na narrativa dos websummiters e afins, o empreendedor ou candidato a empreendedor é um jovem de corpo enxuto que surge em claro contraste com o white trash
composto por pobres gordos que ficam para trás, porque não empreendem,
porque desperdiçam os seus talentos. Nesta narrativa, pobreza é mesmo
uma escolha, tal como a gordura; o white trash, caluniado por empreendedores de direita e por comediantes de esquerda como Maher, é obeso porque não se esforça. Não falo em white trash
por acaso. Hoje em dia, o velho snobismo que os poderosos derramam
sobre o pobre não pode ser tão explícito como no passado, mas não
desapareceu; encontrou, isso sim, outras verbalizações. o fat shaming
é uma delas. Não é por acaso que o branco pobre e gordo tem sido
criticado e diabolizado; estes “deploráveis” não têm direito nem ao véu
protetor do politicamente correto de esquerda nem ao véu da meritocracia
da direita. Estão na carreira de tiro como alvo.
Num
romance oitocentista como “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen, uma
mulher de certa condição é criticada por estar demasiado bronzeada. O
bronze era na época um sinal de trabalho rural e braçal, um trabalho vil
e mecânico que manchava a alvura imprescindível da senhora. Hoje em
dia, uma senhora de certa condição não tem de ser branquelas, mas tem de
ser magra. Se repararem bem, os ginásios estão cheios de mulheres que
já são magras; veem-se por ali pouquíssimas mulheres gordas. Isto porque
o ginásio está para a sociedade meritocrática de hoje como o clube do
chá estava para a sociedade aristocrática: um símbolo de status.
Quem é realmente obeso, quem precisa mesmo de exercício físico sente-se
ali como um pelintra num clube de cavalheiros. Ter peso a mais é como
ter sangue azul a menos.
O gordo é portanto vítima de uma enorme perversão já
deste século: o mérito, valor fundamental, foi transformado numa
ideologia cega, meritocracia, que celebra o vitorioso e que despreza o
(alegado) derrotado ou o (alegado) preguiçoso. E, quando a meritocracia
se cruza com o culto do corpo, ficamos com uma imagem repetida ad nauseam: o gordo só é gordo porque é preguiçoso, porque não se mexe, porque não faz jogging, porque não faz natação ou danças de salão, porque não faz pilates
ou ioga. O corpo volumoso é visto como a personificação da acédia. Os
programas de TV que forçam os gordos a emagrecer através do exercício
partem desta premissa: o gordo, ora essa!, é um mero preguiçoso que
carece de um banho de ética de trabalho no ginásio. O gordo não pode ser
virtuoso ou belo.
Na mesma onda, as modelos plus size são alvo de campanhas que recusam encontrar beleza em corpos voluptuosos. A internet é varrida por slogans
como “being fat is not beautiful, it’s an excuse”, o que volta a expor
as contradições do ar do tempo. Como é que a época da “diversidade” e da
“diferença” não aceita a diferença das mulheres voluptuosas? Porquê?
Até porque, em abono da verdade, é imperioso dizer que qualquer modelo plus size
como Ashley Graham ou Candice Huffine é muitíssimo mais sensual do que
os exércitos de magricelas que dominam a indústria da moda e do
Instagram.
Na escrita e na televisão, Lena Dunham
tem sido uma das vozes mais críticas deste ideal unidimensional de
beleza feminina que destrói todos os dias o ego das mulheres reais, a
começar nas mais volumosas. Quer no seu livro de memórias “Not that Kind
of Girl” quer na série da HBO “Girls”, Dunham tem lutado para impor a
normalidade da mulher real e, sim, gorda. O seu alter ego em “Girls”,
Hannah Horvarth, é uma jovem mulher que mostra sem complexos o seu
corpo, que está longe do ideal de beleza. Passa metade dos episódios em
roupa interior. Não é exibicionismo. Ou melhor, “Girls” pretende exibir a
normalidade dos corpos normais, pretende exibir a revolta das mortais
contra as Calipsos.
A escrita e as personagens de
Dunham são perfurantes e francas, e é essa franqueza desarmante que
inquieta os leitores e espectadores de “Girls”. As pessoas assumem que
ela devia esconder o corpo. Dunham vai contra essa assunção. Um corpo é
um corpo e, como recorda Dom Rigoberto nos seus cadernos ou o mestre
Fellini nos seus filmes, o erotismo humano não é o mesmo que pornografia
centrada num único modelo estereotipado. Um corpo volumoso pode ser
sensual. Tendo um corpo, digamos, heterodoxo, Lena Dunham pode ser tão
ou mais sensual do que atrizes com o corpinho ortodoxo do costume, como
Allison William (do elenco de “Girls”), que é bela e desinteressante ao
mesmo tempo, aliás, é desinteressante porque tem uma beleza tão ortodoxa
que até enjoa. De vez em quando, alguém faz esta pergunta a Lena
Dunham: “Não acha que se está a expor em demasia?” A pergunta, que
aparenta ser bondosa, é, na verdade, cruel. É cruel no seu paternalismo.
A resposta de Dunham costuma ser qualquer coisa como isto: “Você não
faz essa pergunta às atrizes boazonas do costume, pois não?” Claro que
não. Ninguém pergunta a Jessica Biel se ela não acha que se está a expor
em demasia quando aparece nua. O problema das pessoas não é a nudez, é a
nudez de uma atriz que engorda e que recusa a edição de imagem.
No
fundo, Lena Dunham é criticada por exibir o tal corpo “aleijado”. É
como se o corpo de Lena causasse tanta repugnância como os corpos
deformados de um filme macabro de Cronenberg ou Lynch. Aliás, é a
própria cabeça de Dunham que incomoda. Muitas reações anti-Dunham são
reações de quem está a criticar ou a injuriar uma cabeça alegadamente
deformada. Quantos escritores ou escritores se atreveram a ver o mundo
através de uma mulher gorda? Quantos nos deram um livro, filme ou série
que nos force a ver o mundo através de uma pessoa gorda? Quantos? É isto
que causa a polémica, tantas vezes inclemente, que envolve Lena Dunham.
Ela força as pessoas a ver o mundo através do pária dos párias: a
mulher gorda que não se cala, que não é passiva, que vai à luta, que
pensa, que cria, que escreve, que não esconde a sua condição de
“aleijada”.
Se até a poligamia ou zoofilia querem entrar no perímetro da legitimidade, porque é que um corpo volumoso fruto de um modo de vida ocioso tem de ser submetido à humilhação da praxe?
A par da meritocracia que vê o corpo gordo como
objetificação do pecado da preguiça, temos de elencar o ambientalismo
radical que vê “o gordo” como o grande vilão das alterações climáticas. É
inacreditável a quantidade de pessoas que estabelece uma relação causal
entre a “epidemia da obesidade” e o “aquecimento global”. Desde as
mensagens de ódio boçal de ativistas verdes até às declarações de
ministros, é fácil encontrar esta narrativa: o gordo é uma ameaça porque
é o grande consumidor de recursos, o grande comedor das maléficas
carnes e dos luciféricos derivados de leite.
Há
uns anos, um conselheiro ambiental do Governo britânico, Sir Jonathan
Porritt, dos Verdes, afirmou com todas as letras que as pessoas gordas
estão a provocar as mudanças climáticas. Chegou ao ponto de sugerir que o
Governo devia tomar medidas contra os hábitos das pessoas gordas, que
deviam ser forçadas a emagrecer em nome do ambiente. É importante dizer
nesta fase que não estou a exagerar ou a fazer uma caricatura. Sir
Porritt disse mesmo isto, até porque existem “estudos científicos” que
atestam esta tese. Ou seja, em nome de uma meta vista como sacrossanta
(travar as alterações climáticas), os “cientistas” e os “ativistas”
humilham seres humanos concretos; os gordos são aqui desumanizados,
perdem o direito à sua individualidade sagrada e são agrupados num
cliché que os desumaniza à partida.
Como se vê, a
gula do gordo é aqui a grande inimiga da natureza e da vida selvagem. De
resto, o animalismo radical pode chegar ao ponto de colocar o gordo
humano num nível inferior aos animais. Há uns anos, propagandistas
radicais espalharam o seguinte flyer pelo
metro de Londres: “Não gostamos que o nome do belo porco seja usado como
insulto. Tu não és um porco, és um ser humano gordo e horrível.”
Espantoso, não é? Ou talvez não. Os animalistas como o líder do PAN têm
dito ao que vêm. André Silva garante que um cão ou chimpanzé tem mais
características humanas do que um ser humano em coma.
Aqueles que legitimam o seu fat shaming
através do pecado ambiental esquecem uma questão: antes de ser um
hábito individual, muitas vezes imposto pela pobreza, a gula é
alimentada pelos gigantes da comida rápida. O hambúrguer ensopado em
queijo derretido, antes de ser um pecado de quem o come, é um pecado de
quem o produz. Quer dizer, as campanhas de censura social não devem ser
lançadas sobre os gordos (os consumidores), mas sobre os fabricantes de
comida rápida saturada de gordura, sal e açúcar. Se calhar, muitos bens
alimentares deviam sofrer o tratamento dos cigarros, isto é, as suas
embalagens deviam mostrar graficamente os efeitos que têm na saúde.
Seja
como for, é curioso verificar de novo as contradições do ar do tempo.
Esta é uma época que procura ser pós-religiosa, mas, no entanto,
encontramos facilmente o pior da religiosidade, o impulso farisaico, a
punição impiedosa de pecados. Uns querem ver no gordo o pecado da
acédia, outros querem ver no gordo o pecado da gula. O gordo é a
conveniente antropomorfização do pecado, o pecado torna-se uma pessoa
concreta e esmurrável, uma pessoa que está ali para ser esmurrada pela
fúria virtuosa dos justos.
“Já sou um dos vossos?”
Termino
como comecei. Com uma personagem inesquecível, Lorenz. “Lorenz estava
já abatido pelo esforço da corrida (...) a cara tinha muita gordura e
quando se lhe dava uma chapada na bochecha, ela abanava comicamente
(...) Os olhos assumiam uma expressão de quem pede misericórdia, como se
quisesse desculpar-se pelo seu tamanho vergonhoso (...) Assim que
readquiriu o fôlego, olhou em volta para todos nós com olhos que
pareciam suplicar para que pudesse ser, por fim, um de nós. Virámos o
olhar (...) tornara-se cada vez mais feminino: desenvolvera seios e os
rapazes e os filhos de Isager haviam-no, certa vez, levado até à Cauda e
fizeram-no despir-se para que pudessem ver como era uma rapariga (...) E
voltou a lançar-nos o olhar que nos perguntava: Já sou um dos vossos?”
Lorenz
é o gordo de “Nós, os Náufragos”, romance de Carsten Jensen, que é
notável da descrição da crueldade de crianças e jovens sobre os
“aleijados”. Lorenz é um cabide onde todos nós podemos pendurar as
nossas memórias relativas aos gordos. No meu tempo, “o gordo” ainda era
como Lorenz. Havia uma mão-cheia deles. E só tinham uma utilidade no
pátio da escola ou na rua: ir para onde mais ninguém queria ir, a
baliza, defender aquele abismo pintado no chão. “O gordo vai à baliza”,
era uma das frases-bordão. Se quisessem jogar, e muitos queriam, muitos
davam tudo para pertencer ao grupo, os gordos só podiam ficar naquela
posição de sacrifício, o guarda-redes, que mais ninguém queria. Sem
surpresa, acabavam por funcionar como bodes expiatórios das derrotas. O
gordo é um frangueiro! Ó badocha, vais apanhar! Era assim. Parece que
continua a ser assim. Vivemos numa época que, na procura de extirpar
preconceitos idiotas, proíbe críticas justas e piadas necessárias sobre
grupos e minorias. Todas, não. A tribo opulenta, os gordos, é a única
que pode ser alvo de críticas, piadas e, acima de tudo, de muitos
preconceitos. O gordo continua a ir à baliza.
E-Revista Expresso, 1 de novembro de 2019
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