Resgatar da Indiferença
A partir do seu texto, Patrícia Reis exige um confronto moral com o que pode
sentir uma criança que “não serve” José Caria
Este “As Crianças Invisíveis” é um romance que me acompanha desde o verão e para cuja abordagem precisei de tempo. Tempo para assimilar uma narrativa arriscada e para interpelar a essência do que o livro deixou plantado no meu espírito. O risco que a escritora correu parece-me assumido desde antes do incipit, no título que evoca (sem o artigo inicial) o enorme filme franco-italiano, datado de 2005, com que vários realizadores, entre os quais Emir Kusturica, quiseram sacudir a banalidade de imagens mil vezes repetidas. O suporte era, porém, o mesmo, e faltava-lhe o milagre da palavra despojada, lenta, avassaladora, apropriável à velocidade de cada um. Patrícia Reis consegue ir mais longe (ou mais perto), decompondo o drama numa identidade específica, fazendo emergir sem complexos o impercetível do visível e resgatando da indiferença casos catalogados sobre cuja justiça é comum pontificar.
O espectro emocional desenhado suscita questões como
quantas famílias pode uma criança, protegida ou exposta atrás de um
projeto de nome reduzido a uma capitular, abarcar; ou quantas horas e
vidas consegue um escritor recuperar dos seus dias de jornalista a pisar
cristais de tempo, para que este se transforme em modo e circunstância;
ou o que significa ter uma família “de verdade”; ou ainda o que é a
casa de cada um. A invisibilidade esconde situações devastadoras de
crianças sem pais, ou porque foram abandonadas, ou porque a eles foram
retiradas. As razões parecem ser, no caso, tão acessórias quanto as
condições em que vivem e o jogo de cabra-cega a que estão sujeitas para
cumprir protocolos e quadros teóricos desenhados a regra e esquadro, que
impelem, sistematicamente, a agir por rotina e não por convicção. Até
porque é preciso tempo e enternecimento para a convicção. E tempo não há
para tantas crianças; e o enternecimento é uma perigosa armadilha para
bons lutos.
No imaginário infantil, um homem
invisível pode proteger-se e ser poderoso. Mas uma criança invisível é
exibida na sua qualidade de candidata à “normalidade” de uma família e o
seu poder é nulo na sua condição de produto transacionável. E, sem
rosto além de uma espécie de holograma, sem nome além da sua primeira
letra, também o género da criança conforma o eixo do enigma, É, aliás, o
fator que rompe com a previsibilidade do leitor, habituado que está a
imagens e a iniciais que pretendem proteger do que na realidade
desprotegem: da perda, do luto, do medo. A perda do teto conhecido a que
chamam “casa”; do luto que repetidamente fazem ou não conseguem fazer;
do medo do “outro” que o adota; e, ainda mais, do medo de ser
inadotável, devolvido no período da pré-adoção. A autora faz neste
particular a diferença, ao exigir, a partir do texto, um confronto moral
inevitável sobre o que realmente pode sentir, e como pode legitimamente
reagir, uma criança que “não serve” ou de cujos candidatos a adotantes
foi resgatada a tempo. Na narrativa são duas circunstâncias
diametralmente diferentes; na vida de milhares de crianças invisíveis
são catástrofes dificilmente ultrapassadas, feridas de que apenas
sobrevivem se tropeçarem em sentimentos gratificantes ou em modos de
ferozmente se blindarem. São estes os dois polos que pautarão uma “vida
adulta” quando a sociedade lhes outorgar o direito de deixarem de ser
uma unidade estatística e puderem recuperar a voz com que atribuem o
resto do seu nome a uma identidade com rosto, como se acabassem de
nascer.
Luísa Mellid-Franco, Semanário Expresso, 7 de dezembro de 2019
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