Que coisa são as nuvens
José Tolentino Mendonça
Organizadas em torno ao consumo, as nossas sociedades prometem remover as figuras ligadas à inibição, em nome de uma satisfação permanente ilimitada.
Lembro-me
de um poema de Wislawa Szymborska, chamado “Agradecimento”, onde ela se
mostra reconhecida para com todos os seres humanos que não conhece,
pois, pelo menos em relação a esses, não tem de sofrer. E explica-se
assim: “Não espero por eles/ andando da janela à porta/ paciente quase
como um relógio de sol./ [Deles] entendo o que o amor não entende,/ [A
eles] perdoo, o que o amor nunca perdoaria.” O recurso ao discurso
irónico oferece aqui a Szymborska uma linguagem subcontrario,
que pede para ser entendida exatamente ao inverso daquilo que parece
ser o sentido primeiro. Na verdade, o título adequado do poema seria
talvez qualquer coisa entre “frustração” e “lamento”, pois o objeto da
composição não são, como à primeira vista se poderia crer, os
desconhecidos que não se tem de amar, mas sim aqueles próximos, aqueles
entranhados em nós, aquela carne da nossa carne que não se pode, mesmo
dolorosamente, deixar de amar.
É sintomático que
hoje a cultura tenha adotado o ponto de vista dos filhos e alienado do
seu pensamento a perspetiva dos pais. O eclipse dos pais tornou-se como
que a exigência de uma época que lida mal com a representação da lei
simbólica e do limite e pretende usufruir do desejo sem vínculos e sem
confins. Organizadas em torno ao consumo, as nossas sociedades prometem
remover as figuras ligadas à inibição, em nome de uma satisfação
permanente ilimitada. Porém, para ser fecundo, para se constituir como
gerador de vida, para se transcender, o desejo precisa de confrontar-se
com a lei; necessita não só de pensar o seu direito mas também o seu
dever. Nesse sentido, um filho precisa estruturalmente desse diálogo com
aquilo que os pais representam. O desmantelamento cultural dos pais
(dos seus modelos, da sua experiência, da sua sabedoria) num tempo que
ergueu a descontinuidade e a inovação técnica acelerada como um dogma
induz os filhos a pensar que não têm nada a aprender com eles. E esta
fratura tem um alto preço.
É sintomático que hoje a cultura tenha adotado o ponto de vista dos filhos e alienado do seu pensamento a perspetiva dos pais.
A dor do poema de Szymborska é hoje, por exemplo, a de muitos pais, uma dor que raramente se verbaliza. A sensação de abandono começa em geral cedo e é mais transversal e disseminada do que se julga. Ocorre quando as relações com os filhos se tornam tão esporádicas que se deslassam, quando as conversas se enchem de formalidades e hesitações e deixam de pontuar com naturalidade o múltiplo caudal da vida, quando a auscultação mútua deixa de ter lugar, quando a linguagem do afeto é pragmaticamente substituída por um léxico funcionalista que reduz tudo a uma cena de despacho.
Fala disso um dos mais singulares romances que se publicaram este ano, “Em Tudo Havia Beleza” (Alfaguara, 2019), do espanhol Manuel Vilas. Ele diz: “Far-nos-ia bem escrever sobre as nossas famílias, sem nenhuma ficção, sem romancear. Contando apenas o que aconteceu ou o que cremos que tenha acontecido.” É isso que Vilas faz. A meio da vida, devastado por uma sucessão de derivas, parte ao reencontro da memória desse homem e dessa mulher que foram os seus pais e que até aqui nunca chegara a compreender. Agora percebe-os. Colhe o seu heroísmo e as suas razões. O que descobre a posteriori é que em tudo havia beleza: nos gestos quotidianos daqueles primeiros artesãos do seu mundo interior, na sua delicadeza vibrante e dedicada, na generosidade com que colocaram em prática o dom. E, pela primeira vez, dedica-lhes uma carta de amor. Talvez a mais bela frase do livro seja esta: “Pode acontecer que no fim um homem se enamore pela sua própria vida.”
E-Revista Expresso, Semanário Expresso, 7 de dezembro de 2019
Sem comentários:
Enviar um comentário