Quando se fala ou se escreve acerca de presépios, em matéria de arte erudita, é obrigatório referir Machado de Castro
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Como, ao longo dos séculos, o nascimento de Jesus inspirou os mais variados artistas de todas as tendênciasTexto António Valdemar
Através dos séculos, o Natal tem motivado poetas, escritores, dramaturgos, artistas plásticos e músicos de todas as tendências. A palavra deu lugar à reposição, ao vivo, do relato do Evangelho de São Lucas. A imaginação criadora de São Francisco de Assis transformou a narrativa em realidade humana. Transpôs para o horizonte do quotidiano a presença da mãe, do pai e do filho. O quadro da família. E a exaltação do menino, num estábulo humilde e obscuro de Belém, na companhia do boi e do jumento. Assim se representou, no silêncio da noite e ao ar livre, o nascimento de Jesus.
Foi no ano remoto de 1223, em Itália, em Graecio, na província de Rieti. A partir daí, o primeiro presépio do mundo vai propagar-se através da Europa e introduzir-se, durante as descobertas marítimas, nos territórios da África, da Ásia, da América e da Oceânia.
Quando se fala ou se escreve acerca de presépios, em matéria de arte erudita, é obrigatório referir Machado de Castro, cujas obras de escultura se multiplicaram em conventos, igrejas, palácios e outros espaços públicos. Machado de Castro (1731-1822) nasceu em Coimbra, onde começou a aprender a arte com o pai, um dos santeiros mais conceituados da cidade e da região. Veio depois para Lisboa trabalhar com Nicolau Pinto e, a seguir, com José de Almeida, o grande escultor formado em Roma e que foi — no depoimento de Cirilo Volkmar Machado — o primeiro artista português, do século XVIII, que “soube esculpir em pedra”.
A ESCOLA DE MAFRA
Permaneceu Machado de Castro em Mafra, entre 1756 e 1770, na equipa de Giusti que D. João V incumbiu de instalar a Capela de São João Batista na Igreja de São Roque, em Lisboa, e de superintender na construção da basílica, do convento e do palácio de Mafra.
Durante 14 anos, Machado de Castro, sem nunca sair de Portugal, tomou contacto com a riqueza e a diversidade da cultura artística da Europa, que continuava a irradiar nos grandes centros urbanos da Itália. Um dos convívios mais assíduos que estabeleceu em Mafra foi com Francisco Vieira de Matos, o famoso pintor Vieira Lusitano, que se formou em Roma e ganhou o Concurso Clementino, que abria as portas das principais cortes da Europa.
A AMBIÇÃO DO COLOSSAL
Encontrava-se Machado de Castro na plenitude da maturidade profissional ao radicar-se, em 1770, em Lisboa. Realizou obras de vulto para a Basílica da Estrela, o Palácio da Ajuda, as quintas reais de Belém e de Caxias e o Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras. Refletem os mais notáveis paradigmas da construção clássica e neoclássica. Nenhum outro artista português igualou Machado de Castro no seu tempo.
Interveio no plano de reconstrução de Lisboa, após o terramoto de 1755. Recebeu um convite da Casa do Risco das Obras Públicas para fazer a maqueta de uma estátua de homenagem a D. José. O escultor italiano Andrea Imbom, natural de Malta, era o outro concorrente. Um ano depois, apresentado o primeiro estudo, foi entregue a Machado de Castro a concretização da estátua equestre.
Em junho de 1775 decorreu a inauguração, com um cerimonial de aparato inédito. A estátua e o conjunto em que se enquadra têm a amplitude, a imponência e os efeitos decorativos dos melhores mestres europeus. Ficou no centro da Praça do Comércio e passou a ser um dos mais emblemáticos monumentos do mundo.
UNIVERSO QUOTIDIANO
Todavia, a par desta estatuária opulenta, com a ambição do colossal, Machado de Castro também inventou e executou presépios. Constituem a outra componente da sua trajetória profissional.
Sem a pompa orgulhosa e a sumptuosidade altiva que marcam os outros trabalhos da sua produção escultórica, os presépios de Machado de Castro transmitem o calor afetivo, a espontaneidade lírica e satírica que também surpreendemos no teatro popular. Revelam a expressão viva da realidade social voltada para o quotidiano.
Recriou figuras típicas como, por exemplo, o rapaz que toca caixa de rufo, o homem da gaita de foles, a matança do porco e o peregrino ajoelhado que oferece um carneiro, entre a representação de numerosos costumes, usos e tradições genuinamente portugueses.
ESPECULAÇÃO E FRAUDE
Há presépios, incontestavelmente, da autoria de Machado de Castro; outros têm algumas peças dele e a colaboração da sua oficina; outros são de artistas e artífices que foram seus discípulos e continuadores.
E ainda outros, podemos dizer muitos e muitos outros, são imitações — melhores ou piores — e objeto de especulação e de fraude de colecionadores, de antiquários e de leiloeiros.
Aliás, continua a ser muito frequente atribuir a Machado de Castro a autoria de inúmeros presépios ou de pequenos grupos escultóricos alusivos ao ciclo da Natividade, mas que, efetivamente, não lhe pertencem. Até agora não se conseguiu unanimidade de critério acerca do número de presépios da exclusiva autoria de Machado de Castro.
INVENTARIAÇÃO RIGOROSA
Diogo de Macedo, no estudo biográfico e crítico sobre Machado de Castro e em livros e artigos acerca de presépios, inventariou dez presépios comprovadamente de Machado de Castro. Também apurou que apenas está assinado o presépio da Sé de Lisboa. Nele se regista a data em que foi concluído. E também ali se pode ler em carateres visíveis e em latim: “Joach Machado de Castro inven et fecit 1766”.
Estes e outros pormenores, a respeito da vida e da obra de Machado de Castro, foram igualmente examinados nos estudos de Henrique Ferreira Lima, Garcês Teixeira, Luciano Ribeiro, Ayres de Carvalho, Luís Chaves e, mais recentemente, Sérgio Andrade, para citarmos alguns dos investigadores que se detiveram na atividade do escultor, na produção da sua oficina e no contributo dos seus colaboradores.
A partir da inscrição da assinatura de Machado de Castro no presépio da Sé de Lisboa verifica-se que pertence a ele a conceção e a execução integral de um presépio; e, em relação aos demais que lhe são atribuídos, limitam-se quase sempre a algumas peças por ele criadas mas, fundamentalmente, a trabalhos realizados por artistas que faziam parte da sua oficina. Machado de Castro, através da sua correspondência, não escondeu que, em diferentes oportunidades, como sucedeu na própria estátua equestre de D. José, contou como o auxílio direto de vários colaboradores.
DE TERRA EM TERRA
Portugal, em todos os seus territórios geográficos e humanos, do Minho ao Algarve, de Trás-os-Montes ao Alentejo, das ilhas da Madeira às ilhas dos Açores e através dos países da diáspora e da lusofonia, reencontra-se, nesta quadra do ano, na profusão extraordinária dos presépios.
É sempre difícil pormenorizar. Todavia, os presépios das antigas olarias de Estremoz — em minha opinião — podem considerar-se dos mais belos e originais. De terra em terra deparamos, no interior de igrejas, nos adros, noutros espaços públicos, nas casas de habitação, desde as mais ricas até às mais humildes, com presépios e com tudo o que os caracteriza no essencial e com tudo o que os distingue em cada lugar. Por mais remoto e por mais obscuro que seja.
Escultores contemporâneos como, por exemplo, Canto da Maya, ao fazer a representação da família, aproximou-se quase sempre da simbologia da recriação do Natal, seja na arte erudita dos presépios, que assumiu notoriedade em Machado de Castro e nos seus discípulos e continuadores, seja na arte popular realizada ao sabor da imaginação de oleiros muitas vezes anónimos e que se tornaram conhecidos através do nome das terras onde viveram e onde trabalharam o barro.
A VOZ DOS POETAS
Nos Cancioneiros medievais, que encerram os primórdios da cultura portuguesa, o Natal começa a estar presente na poesia de inspiração provençal e de influência galaica. Acompanhou a evolução da língua até atingir autonomia e projeção. As evocações sucederam-se no teatro de Gil Vicente (“Auto Pastoril Português”, um dos mais célebres). Ganhou depois expressão em sonetos de Camões, Diogo Bernardes e Agostinho da Cruz.
Prosseguiu nos árcades, evidenciou-se no génio de Bocage; motivou o virtuosismo de Garrett, a eloquência austera de Herculano e o gosto vernáculo de Castilho, três personalidades classificadas como os três expoentes mais representativos do romantismo.
Eles consagraram ao Natal alguns dos mais belos poemas da língua portuguesa, intervenientes da geração de 70: a simplicidade modelar de João de Deus e os recursos verbais de Guerra Junqueiro. Mas entre os grandes poetas do fim do século XIX e início do século XX, Gomes Leal comunicou toda a sua imaginação exuberante não só ao nascimento de Cristo mas a todos os outros momentos significativos da sua existência. Reuniu estas poesias, em 1883, num livro. Tem apenas o título “História de Jesus para as Criancinhas Lerem”.
Também António Feijó registou o encontro nas ruas da cidade com um vendedor de jornais em plena noite da Consoada. E quantos e quantos outros? Por exemplo, as recriações saudosistas de António Nobre e de Teixeira de Pascoaes; a melodia verbal de Augusto Gil e a memória rural de Afonso Duarte.
Tão diferentes no imaginário, na conceção, nas posições políticas, os poetas do “Orpheu”, da “Presença”, do neorrealismo, dos “Cadernos de Poesia” e do surrealismo abordaram o tema sem se desviarem das ideias fundamentais e até recorrendo às mesmas palavras. Contudo, há um cunho pessoal que logo identifica Fernando Pessoa, Cortes Rodrigues, José Régio, Miguel Torga, Vitorino Nemésio. E também Natércia Freire, Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena e Natália Correia.
Não podemos ignorar outros poetas contemporâneos: José Gomes Ferreira, Álvaro Feijó, António Gedeão, Ruy Belo, David Mourão-Ferreira, Mário Cesariny, para completar uma possível inventariação de nomes de poetas representativos.
Para muitos poetas e escritores, o Natal e o Ano Novo, antes do 25 de Abril, constituíram pretexto para condenar meio século de ditadura, a supressão das liberdades públicas e dos direitos cívicos, a repressão da polícia política e o controlo da censura, nos órgãos de comunicação social, no teatro, no cinema e noutros espetáculos.
Um país oprimido e um país coberto de luto, desde 1961, com uma guerra colonial sem fim à vista, provocando, em três frentes de combate, milhares de mortos e milhares de traumatizados. Ainda hoje debatendo-se com a ressaca da tragédia que os atingiu. Implacavelmente.
TEMAS DOMINANTES
As componentes com que deparamos na poesia também se encontram na prosa e no teatro com tanta ou mais intensidade. É o caso de Raul Brandão, num capítulo de “Os Pobres”, com as confissões trágicas que recolheu numa casa de prostitutas e onde cada uma descreve a desgraça que a fez resvalar na lama e o pressentimento ainda mais negro da fatalidade que a espera.
Predominam, durante a comemoração do ciclo do Natal, a confidência lírica, o arrebatamento místico, as interrogações existenciais e teologais. Acentua-se a carga nostálgica em redor do paraíso perdido da infância e da adolescência; a solicitação da tranquilidade do mundo rural perante as desigualdades sociais, a insegurança e a turbulência das cidades. Todas as formas de expressão literária e estética incidem na retrospetiva do passado e no olhar fixo no presente, sempre na expectativa da mudança.
O desassossego do mundo e a inquietação dos homens continuam a intensificar o apelo para a tolerância e a paz, a solidariedade e a justiça, o diálogo e a reconciliação. A luz que brilha nos olhos das crianças, neste tempo de Natal, irradia, contudo, um sinal de esperança que se acende no coração de cada um de nós.
E-Revista Expresso, 21 de dezembro de 2016
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