Fraco consolo
Por Pedro Mexia
O cómico, escreve Bergson, não se dirige às emoções, mas à inteligência pura
Volto à comédia, porque assim que escrevi a crónica sobre Eagleton e o humor, encontrei uma nova tradução de “O Riso” (1900), o famoso “ensaio sobre a significação do cómico” de Henri Bergson. A terminologia, como se vê, tende para uma confusa sinonímia (humor, cómico, comédia, riso), mesmo em espíritos sofisticados. E não há espírito mais sofisticado do que Bergson, que concebeu noções ousadas de intuição, consciência, duração, e influenciou decisivamente Proust, tendo vencido aliás o Nobel da Literatura, que Proust nunca ganhou. E se habitualmente se diz que “O Riso” não tem graça nenhuma, trata-se de um deslizamento de sentido em si mesmo cómico, como se um manual de medicina tivesse virtudes terapêuticas.
Numa escassa centena de páginas bem escritas mas densas, Bergson estudou a produção do cómico e a essência do cómico. Uma teoria geral da comédia parece impraticável, tantas são as tonalidades e estratégias do discurso cómico; e, no entanto, a comédia é uma técnica, obedece a regras que a definem e circunscrevem. A regra de que só é cómico o que é humano (animais e objectos apenas provocam o riso quando lembram características ou necessidades humanas); a regra da distância emocional (a empatia é um entrave ao riso); a regra do significado social (o cómico tem um contexto colectivo, temporal, linguístico e cultural a que nem sempre sobrevive).
A comédia é o homem que se oferece como espectáculo ao homem. E isso leva Bergson à sugestão, muito contestável, de que a comédia surge quando o indivíduo já não tem de lutar pela sobrevivência. Tal como me parece contestável uma intenção de “correcção” dos comportamentos inerente a toda e qualquer comédia. Muito mais convincente é a tese segundo a qual a grande fonte do cómico é a introdução de um aspecto mecânico, ou mecanizado, no humano. Têm graça as pessoas iguais a outras, as pessoas que desempenham uma tarefa ou repetem uma fórmula, as pessoas embaraçadas com o seu corpo, porque em todas essas situações há um sujeito que se transforma em máquina, ou uma máquina avariada.
Henri Bergson (1859-1941) venceu o Nobel da Literatura em 1927.
Foto: Hulton Archive/Getty Images
Outro conceito brilhante é o do cómico como um sentimento de infância revivificado. Bergson dá como exemplo os mecanismos que consistem no combate entre uma força que se obstina e uma força que impede (a caixa com um diabo que salta com uma mola) ou num movimento “alheio” que ainda assim comandamos (os fantoches). Esses mecanismos, que nos jogos infantis são materiais, tornam-se na comédia imateriais, segundo estratégias de inversão, interferência, segundo absurdos ou quiproquós, obstáculos na engrenagem de um mecanismo. Esses obstáculos podem ser acções, mas também jogos de linguagem: literalizar o sentido figurado, confundir o ser com o dever-ser, degradar o solene em coloquial, usar o vocabulário técnico fora do âmbito técnico.
O terceiro aspecto que me interessa é o objecto do cómico, o sujeito que é objecto do cómico. A comédia “de carácter” é uma comédia “de caracteres”: fazemos pouco dos defeitos dos outros, os leves talvez mais do que os graves, e das suas qualidades, sobretudo quando são qualidades cegas e inflexíveis. Tratamos o outro como um mecanismo avariado, um tipo humano genérico (o avarento, o misantropo), um invólucro sem lado de dentro, uma superfície entendida enquanto superfície. O cómico, escreve Bergson, não se dirige às emoções, mas à inteligência pura. E por isso, ainda que possa ser crítico, ou transformador, o cómico tem qualquer coisa de malícia, de maldade, de amargura. Não admira que digam que Bergson não tem graça nenhuma.
[“O Riso”, de Henri Bergson, Relógio D’Água, trad. de Miguel Serras Pereira]
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
E-Revista Expresso, 9 de novembro de 2019
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