As duas primeiras vezes que me deparei de caras com a agora chamada “linguagem inclusiva” aconteceram no Brasil e apenas me fizeram sorrir, longe de imaginar que mais tarde se tornaria moda e que de moda passaria a certidão de bom comportamento cívico e daí a quase imperativo — tão inútil, tão absurdo e tão idiota quanto o ridículo Acordo Ortográfico da língua portuguesa: o mais patético e humilhante documento jurídico alguma vez assinado por um Governo português.
A primeira vez, aconteceu estava eu a fazer um filme de 60 minutos para a RTP sobre a história da colonização portuguesa da Amazónia — (um projecto editorial que hoje, apenas pelo seu objecto, obviamente não seria autorizado). E estava então em trânsito numa daquelas cidadezinhas amazónicas com nomes do Ribatejo — Santarém ou Almeirim, já não recordo —, quando uma noite me deparo com um comício eleitoral para a prefeitura local, a decorrer numa praça ao ar livre. Sobe ao palanque um candidato com pinta de jagunço dos livros do Jorge Amado, bate três vezes no microfone para se certificar que funcionava, e começa: “Meus povos...” Porém, detém-se, olha a plateia, faz uma pausa e recomeça. “E minhas povas.” Estávamos em 1987.
A segunda vez aconteceu vários anos depois, em Brasília, quando fui entrevistar Dilma Rousseff, acabada de ser eleita Presidente do Brasil. Antes de entrar para a entrevista, uma sua assessora perguntou-me se eu estava ciente de que a Presidente Dilma gostava de ser tratada por “presidenta”. Na verdade eu já tinha ouvido uns zunzuns sobre isso, mas fiz-me de parvo: “Sabe, eu falo português de Portugal. E lá, o substantivo presidente não tem género, tanto se aplica a um presidente homem como mulher. Se eu tratasse a presidente Dilma por ‘presidenta’, teria de tratar um Presidente homem por ‘presidento’. E, mais ainda: a senhora, por exemplo, teria de tratar o polícia federal que está ali fora por ‘senhor polício’.”
Porém, o que então me parecia anedótico agora é real. Mas não porque os princípios tenham mudado ou porque a necessidade de lutar por eles tenha cessado. A luta contra a discriminação de género mantém-se actual e imperiosa em muitos lugares e muitas situações; o mesmo contra a discriminação sexual e mais ainda contra o racismo. O que mudou foi o discurso e, sobretudo, os intérpretes do discurso: esta auto-instituída vanguarda de aiatolas do pensamento autorizado e do protagonismo consentido que decretou quem é que pode falar em nome dos discriminados e defender os seus direitos, quem é que está autorizado a homenagear a sua cultura e respeitar os seus modos de vida, ficando todos os outros reduzidos ao silêncio, sentenciados como hipócritas e expiando as culpas seculares dos seus antanhos. A única coisa que os distingue dessa nobre Comissão para a Promoção da Virtude e Repressão do Vício que zela pela pureza islâmica na Arábia Saudita é que a estes ainda não lhes é possível cortar as mãos aos infiéis, mas apenas cortar-lhes as boas intenções, nessas madraças do terrorismo de massas que são as redes sociais (e é bem feito para as suas vítimas; ando há anos a pregar-lhes a solução: se se atreverem a viver sem as redes sociais, o que não custa nada, o veneno das víboras não os atinge, transforma-se em baba dentro da boca destas). Dá assim dó ver esses incautos que saem à contenda, carregados de boa consciência e boas intenções, contra os novos aiatolas e os seus mandamentos sobre a “linguagem inclusiva”, a “apropriação cultural” e o “movimento woke”, convencidos, ingenuamente, de que vão ao encontro de uma discussão séria. Não vão: estes fanáticos não querem nem discutir nem convencer. Querem proibir, atemorizar, afugentar da luta contra o racismo e a discriminação quem não pertence à tribo: “Se és branco, és necessariamente racista; se és heterossexual, és homofóbico; e se és homem, és obviamente machista.” A extrema-direita agradece e, graças a eles, cresce.
Mas isso pouco lhes importa. Aliás, nada mais lhe importa; e basta lê-los na imprensa de referência que lhes dá acolhimento: nem a guerra que devasta a Europa, nem os miseráveis que morrem afogados a atravessar de África para um paraíso sonhado, nem o planeta que se extingue à nossa vista. São capazes de fazer abaixo-assinados a apelar aos jornais para censurarem quem não escreve segundo a novilíngua, mas dormem tranquilos enquanto os talibãs proíbem as mulheres afegãs de irem à escola ou de trabalharem; são capazes de se indignarem porque a Rita Pereira põe tranças afro, o que acham uma usurpação cultural, mas estão-se nas tintas para os desgraçados escravos asiáticos da agricultura alentejana — porque são apenas amarelos e não pretos. Na verdade, não enxergam nada de mais importante além do próprio umbigo. Como se a auto-invocada superioridade moral da sua litigância e do seu protagonismo os dispensasse de olhar para o mundo. No fundo, não passam de uma gente sem causas que importem.
Miguel Sousa Tavares. A era da estupidez, in Expresso Semanário#2600, de 26 de agosto de 2022. O escritor escreve de acordo com a antiga ortigrafia.
📌Sabia que:
Em 1999, a UNESCO editou um Guia sobre a línguagem neutra em função do sexo, sublinhando que: A linguagem não reflete apenas o modo como pensamos: também forma o nosso pensamento. Se palavras e expressões que pressupõem que as mulheres são inferiores aos homens são reiteradamente usadas, o assumir desta inferioridade tende a tornar-se parte da nossa mentalidade.?
Em 2008, o Parlamento Europeu foi uma das primeiras organizações internacionais a adotar orientações multilingues para a utilização de uma Linguagem neutra do ponto de vista do género?
Em 2021, o CES - Conselho Económico e Social publicou o Manual de linguagem inclusiva, que "pretende ser um guia facilitador da comunicação institucional do CES, inspirando-se em orientações normativas nacionais e internacionais quanto ao uso de uma linguagem inclusiva e promotora da igual visibilidade e simetria de mulheres e homens. Apresenta alternativas ao uso do universal masculino e várias sugestões que visam a inclusão de todas as pessoas que, por qualquer circunstância específica, devam ser mencionadas em documentos institucionais."?
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