Nome fundamental da poesia portuguesa contemporânea, com múltiplo prémios nacionais e internacionais, Ana Luísa Amaral morre aos 66 anos. De “Minha Senhora de Quê” a “Mundo”, são 17 livros de poemas, inúmeros ensaios, publicações infantojuvenis, assinados por uma mulher de causas e marcada por um turbilhão de sentimentos. [...]
Se um vulcão explode, a terra treme. Se um vulcão esmorece, a vida parece adormecer numa tranquilidade falseada. Se o turbilhão de uma voz se transforma no eco do nada, inerte, infértil, o silêncio perde a capacidade de gerar poesia. E sem poesia não há vida, como não há vida para lá da poesia. Ana Luísa Amaral, 66 anos, poeta, mulher, paria palavras com o mesmo fervor de quem gera um filho e não esquece nunca as dores do parto. As palavras ocorriam-lhe, tanto como eram arrancadas ao quotidiano. A busca de perfeição, a demanda da palavra exata para o ritmo certo de um poema concreto, tornava-se obsessiva. Não doentia. Apenas obsessiva na tentativa de chegar ao termo justo. Inquebrável. Insubstituível.
Morreu, dizem as notícias. Quem lhe era próximo sabia-lhe da doença. Cancro. Ana Luísa, assim a nomeava quem com ela convivia, não tinha medo das palavras. O cancro a atacou. O cancro a atormentou. O cancro a consumiu. O cancro a destruiu. Agora. Tão inesperado. Tão matematicamente fatal. Foi breve o tempo da doença. Foi doloroso. Foi tremendo. E Ana Luísa continuava a dizer não. Protegia-se. Tentava afastar-se de perigos iminentes. Dizia não. E esta não era uma forma de proclamar a incapacidade de desistindo, deixar-se vencer.
Conhecia-se-lhe a resistência a aceitar os trilhos capazes de fazerem adiar o fim cada vez mais inevitável. Ainda assim, caminhava. Ainda assim, escrevia. Ainda assim, lia poesia em público. Ainda assim, se submetia a tormentosas sessões de autógrafos, como sucedeu no passado dia 17 de junho. Terá sido a sua última presença em público. Durante mais de uma hora aceitou ler poemas, ser entrevistada perante uma larga audiência na Galeria da Biodiversidade, no Porto, durante o lançamento da antologia poética “O Olhar Diagonal das Coisas”, onde se reúnem os 17 livros de poemas assinados por Ana Luísa Amaral ao longo de um percurso poético cuja visibilidade pública começa tarde.
Na parte final do último poema do seu primeiro livro, publicado em 1990, a poeta escrevia: “Não me apetece virar mais/ o tempo: não é cansaço propriamente/ou quase - é só um rasto incómodo/deixado a escorregar nos interstícios/ das pedras revolvestes,/o chão que me segura,/as estrelas caindo na cidade…”.
A vertigem da partida não apaga a memória. Não esbate o mundo todo contido no universo daquela mulher apaixonada pela poesia de Emily Dickinson. Talvez nunca tenha conseguido captar em absoluto “o som que os versos fazem ao abrir”. Tentava-o há anos num comovente programa na Antena 2, na companhia de Luís Caetano, cujo título era aquele verso roubado a um poema de Emily DIckinson. São horas e horas de leitura, de descoberta de poetas de todas as latitudes. “What’s in a name?”. Shakespeare. Outra das emoções na vida de Ana Luísa. “O que há num nome? Se fosse dado um outro nome/À rosa, seria mesmo doce o seu perfume?”. Assim vai uma das falas de “Romeu e Julieta”, na Cena 2 do segundo ato, conforme a tradução da poeta.
Um obituário é um arrastar de formalidades, mesmo se quem parte vivia de um certo culto da informalidade. Divertida, fumadora quase compulsiva, admitia na última entrevista dada ao Expresso estar a abandonar o vício. Com sacrifício. Muito sacrifício. Aconchegava-se por vezes nos humores da sua cadela, bebia o tempo nas mesas de cafés, onde a poesia lhe jorrava, não como súbito ato de inspiração divina, mas em resultado de um trabalho árduo, de filigrana, de construção metódica, rigorosa. Palavra a palavra. Uma viagem pela sua obra imensa é antes de mais um percurso pelo inesperado. O quotidiano feito poesia. A vida doméstica vertida para poema. As dúvidas e interrogações da filha assumidas como recorrente material para a construção poética.
Não por acaso, o último livro, a reunião da obra toda com mais de mil páginas, tem duas dedicatórias especiais. Abre com uma dedicatória à filhe, Rita (“o olhar, o mundo, o amor - tudo”), e não esquece Maria Irene Ramalho, companheira de profissão enquanto professora na Faculdade de Letras no Porto, e, como não se cansava de dizer, a grande responsável pela publicação do primeiro livro. Aquele do título estranho: “Minha Senhora de Quê”. Aquele no qual se atrevia a estabelecer diálogo com uma das obras marcantes da poesia portuguesa: “Minha Senhora de Mim”, de Maria Teresa Horta.
As palavras arrastam informações. Se se nomeia a condição de professora, torna-se indispensável revelar o currículo de uma mulher que, apesar de estar já aposentada, ainda não resistia a referir-se aos “meus alunos” para significar aqueles que formalmente já não o eram, embora na verdade continuassem a sê-lo. Porque quem passou pelas aulas de Ana Luísa Amaral jamais poderá esquecer aquele entusiasmo, aquela paixão, aquela entrega aos mundos infindos das palavras dos outros. E sobretudo porque Ana Luísa não apagava da memória aqueles e aquelas jovens depois tornados homens e mulheres bem adultos que um dia com ela partilharam a aventura da busca do saber.
Recebeu ao longo da vida inúmeros prémios literários em Portugal e no estrangeiro. O maior prémio, costumava dizer, era a panóplia de amigos e amigas que se lhe foram entranhando na pele ao longo dos anos e como corolário das múltiplas viagens feitas a vários continentes para participar em sessões literárias, feiras literárias, encontros de poesia. Onde fosse preciso ir, Ana Luísa estava lá.
O Porto entranhara-se-lhe. Nascera em Lisboa. Passara parte da infância em Sintra e chegara a Leça da Palmeira com os pais, onde passara a residir, ainda muito nova. Aprendeu a viver o Porto. Construiu o seu próprio imaginário portuense. E embora nunca tenha perdido um certo sotaque lisboeta, o Norte passara a ser a sua alma. O Porto a sua cidade. Leça da Palmeira o seu refúgio inegociável.
No início deste ano a Feira do Livro do Porto decidira escolher Ana Luísa Amaral para ser a homenageada da edição a decorrer entre 26 de agosto e 11 de setembro. Tal como em anos anteriores aconteceu a outros escritores e poetas, ser-lhe-á atribuída a Tília Homenagem na avenida das Tílias. A poeta não estará lá em pessoa.
Às vezes, uma ausência é apenas um intervalo entre dois rios e outras noites. São assim as coisas de partir. Às vezes está escuro. Às vezes a claridade é tão só um estado de transição. Para outro lado. Para lado nenhum. De novo o silêncio.
Cala-se uma voz fundamental da poesia portuguesa contemporânea. Cala-se uma escritora de fantásticas histórias infantojuvenis. Cala-se a mulher, a investigadora com um sólido percurso nos Estudos Feministas e nos Estudos Queer. Cala-se a divulgadora e coordenadora da edição anotada de “Novas Cartas Portuguesas”, o livro publicado com escândalo em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.
No último poema do livro “Às vezes o Paraíso”, Ana Luísa Amaral perguntava: “Era então essa/a terra do segredo,/o espaço de ventura/prometido?”.
Não sabemos. Nuca saberemos. A voz caiu num profundo silêncio. As perguntas, os dilemas, as inquietações desta poeta cuja poesia se entranhava no mais íntimo de nós, ficam. A brotar sentimentos como uma fonte de fios de água. Às vezes o paraíso é isso.
Valdemar Cruz. Expresso, 6 de agosto de 2022
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