NADA ME IMPORTA MENOS DO QUE HOMENS DE SAIAS OU MULHERES VESTIDAS DE CAMIONISTAS DE LONGO CURSO. NO MEU TEMPO, TAMBÉM EU QUERIA VIAJAR LONGO CURSO PELA EUROPA E TER A LIBERDADE DE USAR UM PAR DE CALÇAS
V
ejo muitos rapazes com colares de pérolas. Não daqueles compridos, de duas ou três voltas, não. Daqueles rentes ao pescoço, apertadinhos. Asfixiantes. É uma moda.
E deixem-me ser muito clara, que é o que dizem os políticos quando se preparam para fugir de uma resposta, e é também o meu nome, deixem-me ser muito clara, repito, não tenho nenhum problema com homens com colares de pérolas, zero, escusam de começar a achar que detesto trans e sexo fluido ou sexo como uma construção social em vez de facto biológico. E tal e coisa. Nada me importa menos do que homens de saias ou mulheres vestidas de camionistas de longo curso. No meu tempo, também eu queria viajar longo curso pela Europa e ter a liberdade de usar um par de calças em vez de saias. O meu desejo máximo na vida, aí pelos curtos nove anos, era que os pais me comprassem um par de Levi’s de veludo verde e uma Lacoste vermelha. Reparem na combinação de cores, considerada “pirosa” e por isso mesmo cobiçada. Em Portugal, era semiproibido uma menina usar calças, e jeans nem pensar. Não havia Levi’s pela mesma razão de que não havia Coca-Cola. O regime, na sua infinita obtusidade, suspeitava uma subversão. A Igreja não deixava e o regime e a Igreja eram a mesma coisa, embora Salazar devesse ter visto a sua dose de calças no seminário onde se educou, a serem aproximadas por mãos com lascivos intuitos pertencentes a homens com saias, as únicas autorizadas nos homens, as da batina do sacerdócio. Ou as do ente monástico devotado ao amor de Cristo. Quem abrisse a boca levava umas chibatadas e encerrava-se o assunto.
Dentro das famílias, se um rapaz fosse visto a experimentar o colar de pérolas da mãe era posto a um canto com um sermão duro depois de levar uma sova com cinto do pater familias. E a seguir ia confessar-se a um homem com uma saia.
Nenhum problema com homens com colares de pérolas, e nunca imaginei que usar um colar de pérolas fosse um desejo tão imenso de tantos homens ou rapazes. O meu problema é com o colar de pérolas propriamente dito. No meu tempo, um colar de pérolas apertadinho e rente ao pescoço significava apenas uma coisa. Que a menina era bem-comportada, nunca pecava, ia à catequese e à missa, era boa aluna, amava as disciplinas de Lavores Femininos e Religião e Moral, e respeitava os mais velhos e os pais acima de tudo, embora tivesse autorização para maltratar as criadas.
O colar de pérolas era um atestado de bom comportamento, uma negação de rebeldia ou pensamento inconformista, uma aquiescência, sinal de obediência aos pais e demais educadores e polícias de costumes. O colar ocultava um código de atitudes e idades. Se as pérolas fossem muito grandes, isso significava que se era velha, e velha era qualquer mulher acima dos 35 anos. E tinham de ser pérolas verdadeiras, sinal de que se pertencia a uma boa família, uma cepa aristocrática ou da sólida burguesia. Ninguém tinha pérolas falsas, os chineses ainda não tinham inundado o mercado de pérolas a tostão, andavam todos de uniforme e boina verde com estrelinha vermelha. Outra interpretação das ditas cores.
O colar de pérolas longo, uma volta ou duas, significava uma coisa muito diferente. Que a mulher era bem-nascida, vagamente rebelde. Podia fumar, beber whisky e conhaque, jogar cartas, enganar o marido e ter amantes, mesmo amantes do mesmo sexo, antes de ser moda, guiar automóveis sem ter carta, mesmo fornicar com o chauffeur, e, de um modo geral, prevaricar. Pecar. Significava que era uma pecadora que não ia à missa, não tinha filhos ou se os tinha não se ocupava deles, tinha amas, e passava horas em frente a um espelho de toucador igual ao de uma cortesã dos romances de Guy de Maupassant. E lera um livro, o de Max du Veuzit, autor do best-seller imortal “John, Chauffeur Russo”. Não sei como passaria hoje este título. A “Jane Eyre” e as irmãs Brontë tinham ido para a gaveta, beatas demais.
A mulher do colar de pérolas longo podia comportar-se como quisesse, desde que tivesse um apelido aristocrático, muito dinheiro de família a herdar ou herdado do pai e da mãe, vivesse numa casa apalaçada com muitas criadas e muitas divisões e mantivesse uma espécie de Salon des Refusés num dos salões iluminado com lustres de cristal, espelhos venezianos, estátuas de Canova e óleos e aguarelas pintadas por avó e bisavó artísticas. Um salão onde todos pudessem estontear-se com champanhe, debitar pérolas de cultura, outro tipo de pérolas, convidar poetas e músicos para recitais e, de um modo geral, fazer o que se quisesse mais ou menos libidinosamente em poltronas de veludo e atrás de reposteiros de moiré.
A mulher do colar de pérolas longo era uma versão avançada e menos virtuosa da condessa Ellen Olenska, a mulher separada do romance de Edith Wharton “A Idade da Inocência”. Edith Newbold Jones Wharton, uma sangue azul americana nascida em 1862, sabia tudo sobre mulheres bem e malcomportadas e sobre a opressão do colar de pérolas. Claro que a sua Madame Olenska (não conseguimos prescindir das ressonâncias russas) acaba mal, longe do amado, o fabulosamente sexy Daniel-Day Lewis na obra-prima de Martin Scorsese, também apaixonado pela fabulosamente sexy Michelle Pfeiffer. Madame Olenska é uma aristocrata caída em desgraça por causa de um casamento com um devasso conde polaco. Para resumir a longa história, Michelle e Daniel amam-se, e Daniel, Newland Archer no romance, está comprometido com a honra e a palavra e marcado para casar com a fabulosamente bem-comportada May Welland, Winona Ryder no filme. Colar de pérolas apertadinho e rente ao pescoço, bonitinha e boazinha, incapaz de partir um prato. Newland e Ellen renunciam ao amor e quando ele fica velho e viúvo viaja de Nova Iorque a Paris para a rever pela última vez. Desiste ao olhar a janela do prédio e senta-se num triste banco de jardim. Demasiado tarde para amar. Demasiado tarde para viver. Ellen perguntara-lhe, quando eram jovens. “E a minha liberdade — significa nada?” Significava.
Uma história podia contar-se através de um colar de pérolas.
Quando era criança entrevi, nenhuma criança tinha acesso ou lugar à mesa no mundo dos adultos, uma espécie de Madame Olenska. Era uma mulher estrangeirada, divorciada, rica, libertada, viajada, que mantinha um semiclandestino salão onde se jogava a dinheiro e se cantava e pianava. Era considerada pelas beatas como uma mulher perdida, possuidora, como era natural, de um pretendente mais novo que sucedera ao abandonado marido complacente. Usava um longo colar de pérolas, tinha os olhos sombreados a negro, e não abusava do pó de arroz. Era sedutora e fazia o que queria. Tinha dinheiro para isso. Lia livros proibidos. Era mais inteligente do que todos os homens em volta dela, gotejando mel como abelhas famintas. Esta Madame Olenska tornou-se um dos meus modelos, e revejo o longo colar de pérolas, pérolas das ilhas do Pacífico de um brilho embaciado pelo suor da pele, salteando em liberdade no pescoço. Esta Madame Olenska envelheceu bem, longe da beatice de Lisboa.
A primeira coisa que fiz foi comprar um longo colar de pérolas. Infelizmente, da ilha de Maiorca, quem não tem cão caça com gato. Troquei-o por um longo colar de pérolas russas, não tão caras como as do Taiti (e continuamos sem prescindir das referências russas).
Quase nunca usei as pérolas russas porque a liberdade não morava ali e empeçava em tudo. O colar de pérolas voltou a ser apenas um colar de pérolas.
Clara Ferreira Alves. Pluma Caprichosa, Expresso Semanário#2597, de 5 de julho de 2022
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