Junho, N.º 19 (2022): Vozes do Poema em Prosa
Ao estabelecer uma contiguidade entre prosa e poesia, formas associadas maioritariamente, ainda, a diferentes modos do discurso literário (o narrativo e o lírico) entendidos como contrastantes, o poema em prosa — bem como a prosa poética — parece constituir um inultrapassável paradoxo conceptual, insistentemente redefinido pela crítica e pela teoria literárias como pseudo-género em estado de permanente reformulação e assente na hibridez, na anomalia ou na “exploração metonímica da incompletude” (Atherton e Hetherington 2016: 22). Em suma, a forma do poema em prosa parece invocar certa ideia de deformidade como característica fundadora e fundamental, sugerindo que se trata de um objecto constitutivamente ou potencialmente disruptivo, experimental e inconfor-me, que, como afirma Suzanne Bernard em Le Poème en prose de Baudelaire jusqu’à nos jours, obra que continua a ser a grande referência neste campo de estudos, oscila entre dois pólos, o da “anarquia destrutiva” e o da “organização artística” (1978: 444). Este número da eLyra procura interrogar e re-perspectivar o poema em prosa e as margens entre prosa e poesia, sem limites pré-determinados no que toca a épocas, línguas ou tradições literárias. A incidência dos olhares críticos sobre pontos de confluência e de atravessamento pretende dar espaço a estudos que reconsiderem o lugar-comum do choque formal produzido pelo poema em prosa à luz de novos entendimentos. Associado tanto ao narrador quanto ao sujeito lírico, ou dissociado de ambos, o poema em prosa e a prosa poética possibilitam interrogações específicas, pelo viés da sua estrutu-ração narrativa ou da sua dimensão lírica, em relação a quem ou ao que fala (Kjerkegaard 2014: 188). É por esta razão que ao explorar também o “momento elástico” que configura a temporalidade do poema em prosa (Munden 2017), ou seja, a sua inscrição de histórias e a sua inscrição na História, este género tem sido um lugar privilegiado na manifestação de subjectividades alternativas e periféricas (feministas, queer, pós-coloniais, entre outras), e, ainda, subjectividades não-humanas (o objecto, a coisa, o animal).
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