terça-feira, 12 de julho de 2022

Inflação de notas perverte acesso ao Superior e agrava desigualdades

 


Ministério perdeu controlo sobre as notas dadas pelas escolas privadas

Mudança das regras de acesso ao Ensino Superior fez com que os colégios deixassem de comunicar as notas internas à tutela


ISABEL LEIRIA, JOANA PEREIRA BASTOS E RAQUEL ALBUQUERQUE

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os últimos dois anos letivos, como resposta ao impacto da pandemia, os exames nacionais deixaram de contar para o cálculo da nota final das disciplinas, servindo só para acesso ao Ensino Superior. As escolas públicas continuaram a comunicar ao Ministério da Educação as notas que os professores dão aos seus alunos em cada disciplina, mas os colégios já não têm essa obrigação. Dessa forma, o Ministério deixou de ter acesso às classificações internas das escolas privadas, perdendo controlo sobre uma possível inflação de notas, já detetada em alguns colégios e que pode beneficiar os alunos na entrada na faculdade. Isto porque a média do secundário conta 50% a 65% para o acesso.

O diretor-geral de Estatísticas da Educação, Nuno Rodrigues, confirma que a atual recolha de dados junto das escolas privadas não inclui essa informação. “Neste momento, para efeito da produção das estatísticas oficiais, não lhes são pedidas as notas internas dos alunos a cada uma das disciplinas. Mas se se vier a prescindir em definitivo dos exames [para a conclusão do Secundário], podemos começar a fazê-lo”, afirma, em entrevista ao Expresso. O responsável admite que, perante a ausência dessa informação, se perde controlo sobre a inflação das notas nestas escolas. “Vamos acreditar na honestidade de todos.”

Com a entrada em vigor desta alteração em 2020, as notas finais das disciplinas do Secundário passaram a refletir só a classificação dada internamente pelos professores, sem ter em conta a obtida no exame nacional, que antes pesava 30%. Em resultado dessa mudança, o Ministério deixou de calcular o indicador relativo à inflação de notas em escolas públicas e privadas, que comparava as classificações internas dadas pelos professores com as médias obtidas pelos alunos nos exames. Essa análise deixava à vista quais as escolas que, ano após ano, mais inflacionavam as notas para facilitar o acesso dos seus estudantes ao Ensino Superior.

Ainda assim, no ano letivo de 2021/22, a Inspeção-Geral da Educação e Ciência (IGEC) interveio em 78 escolas públicas e privadas, de forma “a promover a melhoria das práticas de avaliação”. Foram instruídos seis processos de inquérito, três em escolas públicas e três em colégios, que deram origem a 12 processos disciplinares. “Na maior parte dos casos, o objeto dos processos consistiu na falta de rigor na aplicação dos critérios de avaliação das disciplinas do Ensino Secundário”, indica o gabinete do ministro João Costa.

Já em 2019 a atribuição de classificações “anormalmente altas” tinha levado a uma investigação da IGEC, que deu origem a 64 sanções a responsáveis de escolas privadas e públicas, incluindo multas e suspensão de funções.

Ainda que a nota final de cada disciplina deixe de ser influenciada pelo exame, esta contribui para a média do Secundário, que continua a contar para a entrada na faculdade. É aí que se gera desigualdade entre os alunos de escolas que inflacionam notas e as que não o fazem. Dependendo da faculdade, a média do Secundário pesa tanto ou mais do que os exames para o acesso ao Superior.

‘VINTES’ MAIS QUE DUPLICAM A EDUCAÇÃO FÍSICA

Nos últimos dois anos letivos, o Ministério da Educação disponibilizou um ficheiro com as classificações internas dos alunos por disciplina em todas as escolas públicas do continente. Os dados mostram que as notas 20 atribuídas no 12º ano aumentaram em quase todas as disciplinas em 2020/21, comparando com o ano letivo anterior. Mais do que duplicaram a Educação Física, saltaram para quase o dobro em Português, subiram 50% a Matemática e a Biologia ou História houve mais um terço do que em 2019/20.

Educação Física e Aplicações Informáticas concentram quase um terço de todos os 20. E se juntarmos Biologia e Psicologia, estão reunidas mais de metade das notas 20 que os professores deram aos alunos. A inflação de classificações a Educação Física e outras disciplinas sem exame não é novidade. Em 2019, chegou a motivar a abertura de um inquérito da IGAE ao Externato Ribadouro, no Porto, depois de ser conhecida a elevada concentração de 19 e 20 em turmas do 10º ano.

A nível nacional, nas escolas públicas, entre todas as notas atribuídas aos alunos a todas as disciplinas, apenas 9% foram ‘vintes’. Mas alguns estabelecimentos de ensino ultrapassam largamente essa média, chegando a ter cerca de um terço de notas máximas. Há mesmo três públicas onde mais de metade das classificações foram 19 e 20, como é o caso da Secundária Dr. Ferreira da Silva, em Oliveira de Azeméis, a Latino Coelho, em Lamego, e a Secundária de Carrazeda de Ansiães.

Educação Física volta a aparecer em destaque, uma vez que em algumas destas públicas mais de metade dos alunos tiveram nota máxima. O cenário é ainda de maior “sucesso” na disciplina de Aplicações Informáticas, que, a nível nacional, tem uma média de 18 valores. Numa dezena de escolas, foi dado 20 a mais de três quartos dos alunos. Em Português, a média nacional nas públicas fica por 14 valores e apenas 1% dos estudantes conseguiram 20. Ainda assim, houve escolas a dar mais de 10% de notas máximas na disciplina.

Num relatório divulgado em 2018, a IGEC abordou as estratégias usadas pelas escolas para inflacionar as notas e uma delas era sobrevalorizar componentes que não são avaliados através de testes, como a oralidade ou atividades laboratoriais.

Expresso Semanário#2593, de 8 de julho de 2022


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