Helder Oliveira sobre obra de Cornelis Anthonisz, 1547
Babel é uma metáfora para aquilo que algumas formas de redes sociais fizeram a quase todos os grupos e instituições mais importantes para a sociedade. Como é que isto aconteceu?
C
omo teria sido viver em Babel nos dias após a sua destruição? No Génesis é dito que os descendentes de Noé construíram uma grande cidade na terra de Sinar. Construíram uma torre “grande que chegasse aos céus” para “ficarem famosos”. Deus ficou ofendido pela arrogância da Humanidade e disse: “Vejam, são um só povo, e têm uma só língua; e isto é apenas o princípio do que farão; nada do que se proponham fazer será impossível para eles. Vou lá baixo confundir as suas línguas, de modo que eles se não entendam uns aos outros.”
O texto não diz que Deus destruiu a torre, mas como em muitas representações populares da história Ele o faz, vamos, então, manter essa imagem dramática na nossa mente: pessoas a vaguear entre as ruínas, incapazes de se comunicar, condenadas à incompreensão mútua.
A história de Babel é a melhor metáfora que encontrei para o que aconteceu com a América na década de 2010, e para o país fragmentado que hoje habitamos. Algo correu terrivelmente mal, muito de repente. Estamos desorientados, incapazes de falar a mesma língua ou de reconhecer a mesma verdade. Estamos afastados uns dos outros e do passado.
Já há algum tempo que é evidente que a América Vermelha e a América Azul estão a tornar-se dois países diferentes que reivindicam o mesmo território, com duas versões diferentes da Constituição, da economia e da história americana. Mas Babel não é uma história sobre o tribalismo; é uma história sobre a fragmentação de tudo. É sobre o abalo de tudo o que parecia sólido, a dispersão de pessoas que tinham sido uma comunidade. É uma metáfora para o que está a acontecer não só entre o vermelho e o azul, mas também entre a esquerda e a direita, bem como dentro de universidades, empresas, associações profissionais, museus e até mesmo famílias.
Babel é uma metáfora para aquilo que algumas formas de redes sociais fizeram a quase todos os grupos e instituições mais importantes para o futuro do país — e a nós enquanto povo. Como é que isto aconteceu? E o que é que prenuncia para a vida americana?
A ASCENSÃO DA TORRE MODERNA
Existe um sentido para a história e segue na direção da cooperação em grande escala. Vemos esta tendência na evolução biológica, na série de “transições importantes” através das quais surgiram os organismos multicelulares que, em seguida, desenvolveram novas relações simbióticas. Vemos isso também na evolução cultural, como Robert Wright explicou no seu livro de 1999, “Nonzero: The Logic of Human Destiny”, onde mostrou que a história envolve uma série de transições, impulsionadas pelo aumento da densidade populacional e pelas novas tecnologias (escrita, estradas, prensa) que criaram novas possibilidades de comércio e aprendizagem mutuamente benéficas. Os conflitos de soma zero, como as guerras religiosas que surgiram quando a invenção da prensa espalhou ideias heréticas por toda a Europa, foram considerados como reveses temporários e, por vezes, até mesmo integrais para o progresso. (Essas guerras religiosas, argumentou, tornaram possível a transição para os Estados-nação modernos com cidadãos mais bem informados.) O Presidente Bill Clinton elogiou a representação otimista de Nonzero de um futuro mais cooperativo, graças aos avanços tecnológicos contínuos.
O início da internet dos anos 90, com as suas salas de chat, painéis de mensagens e e-mail, é um exemplo da teoria de Nonzero, tal como a primeira leva de plataformas de redes sociais lançadas por volta de 2003. O MySpace, o Friendster e o Facebook fizeram com que fosse fácil entrar em contacto com amigos e estranhos para falar sobre interesses comuns, gratuitamente, e numa escala nunca antes imaginável. Em 2008, o Facebook tinha emergido como a plataforma dominante, com mais de 100 milhões de utilizadores mensais, atualmente a caminho dos cerca de 3 mil milhões. Na primeira década do novo século, acreditava-se que as redes sociais eram uma dádiva para a democracia. Que ditador poderia impor a sua vontade a uma cidadania interligada? Que regime poderia construir uma parede para manter a internet afastada?
O ponto alto do otimismo tecnodemocrático foi, sem dúvida, 2011, um ano que começou com a Primavera Árabe e terminou com o movimento global Occupy. Foi também nessa altura que o Google Translate ficou disponível em praticamente todos os smartphones. Assim, podemos dizer que 2011 foi o ano em que a Humanidade reconstruiu a Torre de Babel. Estávamos mais perto do que nunca de nos tornarmos “um só povo” e tínhamos superado de forma eficaz a maldição da divisão pela linguagem. Para os otimistas tecnodemocráticos, parecia ser apenas o início do que a Humanidade poderia fazer.
Em fevereiro de 2012, enquanto se preparava para tornar o Facebook uma empresa pública, Mark Zuckerberg refletia sobre esses tempos extraordinários e apresentou os seus planos. “Hoje, a nossa sociedade atingiu outro ponto crítico”, escreveu numa carta dirigida aos investidores. O Facebook esperava “reajustar a forma como as pessoas disseminam e consomem a informação”. Ao dar-lhes “o poder de partilhar”, estaria a ajudá-las a “transformar uma vez mais muitas das nossas principais instituições e indústrias”.
Nos dez anos seguintes, Zuckerberg fez exatamente o que disse que faria. Reajustou a forma como disseminamos e consumimos a informação; transformou as nossas instituições e empurrou-nos para lá do ponto crítico. Não correu da forma como ele esperava.
AS COISAS DESMORONAM-SE
Historicamente, as civilizações confiaram no sangue, nos deuses e nos inimigos partilhados para contrariar a tendência de se dividirem à medida que iam crescendo. Mas o que é que mantém unidas democracias seculares grandes e diversificadas, como os Estados Unidos e a Índia, ou, até mesmo, a Grã-Bretanha moderna e a França?
Os sociólogos identificaram pelo menos três grandes forças que unem coletivamente as democracias bem-sucedidas: capital social (extensas redes sociais com altos níveis de confiança), instituições fortes e histórias partilhadas. As redes sociais enfraqueceram todas as três forças. Para ver como, temos de compreender como as redes sociais mudaram ao longo do tempo — e, em especial, nos anos depois de 2009.
Nas suas primeiras encarnações, plataformas como o Myspace e o Facebook eram relativamente inofensivas. Permitiram aos utilizadores criar páginas nas quais publicavam fotos, atualizações da família e links para as páginas, essencialmente, estáticas dos seus amigos e bandas favoritas. Desta forma, as primeiras redes sociais podem ser vistas como apenas mais um passo na longa evolução das melhorias tecnológicas, do serviço postal, passando pelo telefone, até ao correio eletrónico e às mensagens de texto, que ajudaram as pessoas a alcançar o objetivo eterno de manter os seus laços sociais.
Mas gradualmente, os utilizadores das redes sociais ficaram mais à vontade para partilhar detalhes íntimos das suas vidas com estranhos e empresas. Como escrevi, com Tobias Rose-Stockwell, num artigo da “Atlantic” de 2019 as pessoas tornaram-se mais hábeis a dar espetáculo e a gerir a sua marca pessoal — atividades que podem impressionar os outros, mas que não cimentam uma amizade da mesma maneira que uma conversa telefónica privada o faz.
Depois de as redes sociais terem treinado os seus utilizadores a passarem mais tempo a atuar e menos tempo a ligar-se, estava preparado o cenário para a grande transformação, que começou em 2009: a intensificação da dinâmica viral.
Antes de 2009, o Facebook dava aos utilizadores uma cronologia simples — um fluxo interminável de conteúdos gerados pelos seus amigos e outros contactos, com as publicações mais recentes no topo e as mais antigas em baixo. Isto era frequentemente impressionante em termos de volume, mas era uma reflexão exata de o que outro publicava. Isso começou a mudar em 2009, quando o Facebook deu aos utilizadores uma forma de, publicamente, dar “gostos” nas publicações com o clique de um botão. Nesse mesmo ano, o Twitter introduziu algo ainda mais poderoso: o botão de retweet, que permitiu aos utilizadores subscreverem publicamente uma publicação, ao mesmo tempo que a partilhavam com todos os seus seguidores. O Facebook copiou rapidamente essa inovação com o seu próprio botão de “partilhar”, que ficou disponível para os utilizadores de smartphones em 2012. Os botões “gosto” e “partilhar” rapidamente se tornaram funcionalidades padrão da maioria das outras plataformas.
Pouco depois do botão “gosto” começar a produzir dados sobre o que mais “envolvia” os seus utilizadores, o Facebook desenvolveu algoritmos para dar a cada utilizador o conteúdo mais provável de gerar uma interação “gosto” ou qualquer outra, acabando por incluir também o “partilhar”. Estudos posteriores mostraram que as publicações mais prováveis de serem partilhadas são as que desencadeiam emoções — especialmente a raiva por grupos de pessoas diferentes.
Em 2013, as redes sociais tinham-se tornado num novo jogo, com dinâmicas diferentes das de 2008. Com jeito e sorte era possível criar uma publicação que se “tornasse viral” e o tornasse “famoso na internet” por alguns dias. Se errasse, poderia ficar soterrado em comentários de ódio. As nossas publicações alcançam a fama ou a ignomínia com base nos cliques de milhares de estranhos e, em contrapartida, contribuímos com milhares de cliques para o jogo.
Este novo jogo incentivou a desonestidade e a dinâmica da multidão: os utilizadores eram guiados não apenas pelas suas verdadeiras preferências, mas pelas suas experiências passadas de recompensa e punição e pela forma como previam as reações dos outros a cada nova ação. Um dos engenheiros do Twitter que trabalhou no botão de retweet revelou mais tarde que lamentava a sua contribuição porque tinha feito do Twitter um lugar mais desagradável. Enquanto observava as multidões do Twitter a formarem-se através da utilização desta nova ferramenta, pensou para si próprio: “acho que acabámos de dar uma arma carregada a miúdos de quatro anos”.
Como psicólogo social que estuda emoção, moralidade e política, também vi isso a acontecer. As plataformas recentemente ajustadas foram quase perfeitamente concebidas para realçar as nossas personalidades mais moralistas e menos refletoras. O volume da indignação era chocante.
Helder Oliveira sobre obra de Van Haarlem, 1592
Foi contra este tipo de propagação explosiva de raiva que James Madison nos tentou proteger enquanto elaborava a constituição dos Estados Unidos. Os autores da Constituição eram excelentes psicólogos sociais. Sabiam que a democracia tinha um calcanhar de Aquiles porque dependia do julgamento coletivo do povo e as comunidades democráticas estão sujeitas à “turbulência e fraqueza das paixões indisciplinadas”. A chave para a conceção de uma república sustentável foi, assim, a construção de mecanismos para abrandar as coisas, refrear paixões, exigir compromisso e dar aos líderes algum isolamento da euforia do momento, continuando a responsabilizá-los perante o povo periodicamente, no dia das eleições.
As empresas de tecnologia que melhoraram a viralidade entre 2009 e 2012 levaram-nos ao pesadelo de Madison. Muitos autores citam os seus comentários no “Federalist nº 10” sobre a tendência humana inata para a “fação”, ou seja, a nossa tendência para nos dividirmos em equipas ou partidos que estão tão inflamados pela “animosidade mútua” que estão “muito mais dispostos a vexar-se e a oprimir-se mutuamente do que cooperar para o seu bem comum”.
Mas esse ensaio continua com uma visão menos citada, mas igualmente importante, sobre a vulnerabilidade da democracia à trivialidade. Madison salienta que as pessoas são tão propensas ao sectarismo que “quando nenhuma ocasião substancial se apresenta, as distinções mais banais e fantasiosas são suficientes para acender as suas paixões hostis e excitar os seus conflitos mais violentos”.
As redes sociais ampliaram e armaram o banal. Será que a nossa democracia está mais saudável agora que já tivemos lutas no Twitter sobre o vestido tax the rich que a congressista Alexandria Ocasio-Cortez usou na Met gala, e sobre o vestido que Melania Trump usou num evento no memorial do 11 de Setembro, cujas costuras faziam lembrar um arranha-céus? E o tweet do senador Ted Cruz que critica o Poupas por tweetar que foi levar a sua vacina contra a covid?
O problema não é apenas o desperdício de tempo e diminuição de atenção; é a contínua perda de confiança. Uma autocracia pode distribuir propaganda ou usar o medo para motivar os comportamentos que deseja, mas uma democracia depende da aceitação amplamente interiorizada da legitimidade das regras, normas e instituições. A confiança cega e irrevogável num qualquer indivíduo ou organização em particular nunca está garantida. Mas quando os cidadãos perdem confiança nos líderes eleitos, nas autoridades de saúde, nos tribunais, na polícia, nas universidades e na integridade das eleições, então todas as decisões são contestadas; todas as eleições são uma luta de vida ou morte para salvar o país do outro lado. O mais recente Edelman Trust Barometer (um barómetro internacional da confiança dos cidadãos no governo, nas empresas, nos meios de comunicação social e nas organizações não governamentais) mostrou autocracias estáveis e competentes (China e Emirados Árabes Unidos) no topo da lista, enquanto democracias contestadas como os Estados Unidos, o Reino Unido, Espanha e a Coreia do Sul tiveram resultados próximos do fim da lista (embora acima da Rússia).
Estudos académicos recentes sugerem que as redes sociais são de facto corrosivas para a confiança em governos, meios de comunicação social e pessoas e instituições em geral. Um documento de trabalho que oferece uma revisão mais abrangente da investigação, liderada pelos sociólogos Philipp Lorenz-Spreen e Lisa Oswald, conclui que “a grande maioria das associações relatadas entre a utilização das redes digitais e a confiança parece ser prejudicial para a democracia”. A literatura é complexa — alguns estudos mostram benefícios, particularmente em democracias menos desenvolvidas — mas a revisão concluiu que, em suma, as redes sociais ampliam a polarização política, fomentam o populismo, especialmente o populismo de direita, e estão associadas à propagação da desinformação.
Quando as pessoas perdem confiança nas instituições, perdem confiança nas histórias contadas por essas instituições. Isso é particularmente verdadeiro para as instituições encarregadas da educação das crianças. Os currículos de história causaram muitas vezes controvérsia política, mas o Facebook e o Twitter tornam possível aos pais mostrar a sua indignação todos os dias com um novo trecho das aulas de história dos seus filhos — e das aulas de matemática e das escolhas literárias e de quaisquer novas alterações pedagógicas em qualquer parte do país. Os motivos dos professores e administradores são questionados, e por vezes seguem-se leis ou reformas curriculares superabrangentes, que degradam o ensino e reduzem ainda mais a confiança no mesmo. Um resultado é que os jovens educados na era pós-Babel têm menos probabilidade de chegar a uma história coerente de quem somos como povo, e menos probabilidade de compartilhar qualquer história com aqueles que frequentaram escolas diferentes ou que foram educados numa década diferente.
O ex-analista da CIA, Martin Gurri, previu esses efeitos fraturantes no seu livro de 2014 “The Revolt of the Public” (“A Revolta do Público”). A análise do autor centrou-se nos efeitos subversivos da autoridade do crescimento exponencial da informação, começando pela internet na década de 1990. Há quase uma década Gurri já via o poder das redes sociais como solvente universal, quebrando laços e enfraquecendo instituições onde quer que chegassem. Notou que as redes distribuídas “podem protestar e derrubar, mas nunca governar”. Descreveu o niilismo dos muitos movimentos de protesto de 2011 que se organizaram, principalmente online, e que, como o Occupy Wall Street, exigiram a destruição das instituições existentes sem oferecer uma visão alternativa do futuro ou uma organização que o pudesse fazer.
Gurri não é fã das elites ou da autoridade centralizada, mas nota uma característica construtiva da era predigital: um único “público geral”, todos consumindo o mesmo conteúdo, como se todos olhassem para o mesmo espelho gigantesco no reflexo da sua própria sociedade. Num comentário à Vox que lembra a primeira diáspora pós-Babel, disse: “A revolução digital despedaçou esse espelho, e agora o público habita aqueles pedaços de vidro partidos. Assim, o público não é uma coisa; é altamente fragmentado e é basicamente mutuamente hostil. Na maioria das vezes, são pessoas a gritar umas com as outras e a viver em bolhas de um tipo ou de outro.”
Mark Zuckerberg não pode ter desejado nada disto. Mas, ao reajustar tudo numa corrida pelo crescimento — com uma conceção ingénua da psicologia humana, pouca compreensão da complexidade das instituições e nenhuma preocupação pelos custos externos impostos à sociedade — o Facebook, o Twitter, o YouTube e algumas outras grandes plataformas dissolveram involuntariamente a argamassa da confiança, da crença nas instituições e das histórias partilhadas que mantinham unida uma democracia secular grande e diversificada.
Penso que podemos datar a queda da torre entre 2011 (o ano focal dos protestos “niilistas” de Gurri) e 2015, um ano marcado pelo “grande despertar” à esquerda e pela chegada de Donald Trump à direita. Trump não destruiu a torre, apenas explorou a sua queda. Foi o primeiro político a dominar a nova dinâmica da era pós-Babel, na qual a indignação é a chave para a viralidade, o desempenho em palco desfaz a competência, o Twitter pode sobrepor-se a todos os jornais do país e as histórias não podem ser partilhadas (ou pelo menos fidedignas) por mais do que alguns fragmentos adjacentes, pelo que a verdade não pode alcançar uma adesão generalizada.
Os muitos analistas, incluindo eu próprio, que argumentaram que Trump não podia vencer as eleições baseavam-se em intuições anteriores a Babel, que diziam que escândalos como a gravação de Access Hollywood (na qual Trump se gabava de ter cometido abusos sexuais) são fatais para uma campanha presidencial. Mas depois de Babel, nada significa realmente mais nada — pelo menos não de uma maneira que seja duradoura e em que as pessoas concordam amplamente.
POLÍTICA APÓS BABEL
“A política é a arte do possível” afirmou em 1867 o estadista alemão Otto von Bismarck. Numa democracia pós-Babel, não há muito que possa ser possível.
É claro que a guerra da cultura norte-americana e o declínio da cooperação interpartidária antecedem a chegada das redes sociais. A segunda metade do século XX foi uma época de polarização invulgarmente baixa no Congresso, que começou a voltar a níveis históricos nos anos 70 e 80. A distância ideológica entre os dois partidos começou a aumentar mais rapidamente na década de 90. A Fox News e a Revolução Republicana de 1994 converteram o GOP (Grand Old Party) num partido mais combativo. Por exemplo, o porta-voz da Casa, Newt Gingrich aconselhou os novos membros republicanos do Congresso a não se mudarem com as suas famílias para Washington, D.C., onde provavelmente poderiam criar laços sociais com os democratas e as suas famílias.
Logo, as relações entre os partidos já estavam tensas antes de 2009. Mas a viralidade reforçada das redes sociais tornou mais perigosa a confraternização com o inimigo ou um ataque menos vigoroso. À direita, o termo RINO (Republican in Name Only — Republicano só de nome) foi substituído em 2015 pelo termo mais desdenhoso cuckservative (cornoservador), popularizado no Twitter pelos apoiantes de Trump. À esquerda, as redes sociais lançaram a cultura do cancelamento nos anos posteriores a 2012, com efeitos transformadores na vida universitária e, mais tarde, na política e na cultura em todo o mundo de língua inglesa.
O que mudou a partir de 2010? Vamos rever a metáfora do engenheiro do Twitter de dar uma arma carregada a miúdos de quatro anos. Um tweet maldoso não mata ninguém; é uma tentativa de envergonhar ou punir alguém publicamente ao mesmo tempo que se enaltece a própria virtude, brilho ou lealdade tribal. É mais um dardo do que uma bala, causa dor, mas não mata ninguém. Mesmo assim, entre 2009 e 2012, o Facebook e o Twitter ultrapassaram cerca de mil milhões de pistolas de dardos a nível mundial. Desde então, temos vindo a disparar uns contra os outros.
As redes sociais deram voz a algumas pessoas que antes tinham pouca voz e tornaram mais fácil responsabilizar as pessoas poderosas pelos seus erros, não apenas na política, mas nas empresas, no meio artístico, no meio académico e em todo o lado. Os agressores sexuais poderiam ter sido nomeados em publicações anónimas em blogues antes do Twitter, mas é difícil imaginar o movimento #MeToo a ser tão bem-sucedido sem a melhoria viral oferecida pelas principais plataformas. No entanto, a “responsabilização” distorcida das redes sociais também trouxe injustiça — e disfunção política — de três maneiras.
Em primeiro lugar, as pistolas de dardos das redes sociais dão mais poder aos trolls e provocadores, enquanto silenciam as pessoas boas. Uma investigação dos especialistas em ciência política Alexander Bor e Michael Bang Petersen chegou à conclusão que um pequeno subconjunto de pessoas em plataformas de redes sociais está altamente preocupado em obter um estatuto e está disposto a usar a agressão para o fazer. Estas pessoas admitem que nas suas discussões online frequentemente dizem asneiras, gozam com os seus opositores e são bloqueados por outros utilizadores ou são denunciados por comentários impróprios. Ao longo de oito estudos, Bor e Petersen descobriram que estar online não tornava a maioria das pessoas mais agressiva ou hostil; pelo contrário, permitia que um pequeno número de pessoas agressivas atacasse um conjunto muito maior de vítimas. Os politólogos descobriram que até mesmo um pequeno número de idiotas conseguia dominar os fóruns de discussão, porque os não idiotas facilmente se afastam de discussões online sobre política. Estudos adicionais revelam que as mulheres e as pessoas negras são assediadas desproporcionalmente, pelo que a praça pública digital é menos recetiva às suas vozes.
Em segundo lugar, as pistolas de dardos das redes sociais dão mais poder e voz aos extremos políticos, ao mesmo tempo que reduzem o poder e a voz da maioria moderada. O estudo “Tribos Ocultas”, realizado pelo grupo pró-democracia More in Common, inquiriu 8 mil americanos em 2017 e 2018 e identificou sete grupos que partilhavam crenças e comportamentos. O mais à direita, conhecido como “conservadores devotos”, compreendia 6% da população norte-americana. O grupo mais à esquerda, os “ativistas progressistas”, era composto por 8% da população. Os ativistas progressistas foram de longe o grupo mais prolífico das redes sociais: 70% tinham compartilhado conteúdo político durante o ano anterior. Os conservadores devotos vinham em segundo com 56%.
Estes dois grupos extremos são semelhantes de formas surpreendentes. São os mais brancos e mais ricos dos sete grupos, o que sugere que a América está a ser dilacerada por uma batalha entre dois subconjuntos da elite que não são representativos da sociedade em geral. Além disso, são os dois grupos que mostram a maior homogeneidade nas suas atitudes morais e políticas. Os autores do estudo especulam que esta uniformidade de opinião é provavelmente resultado de um “policiamento do pensamento” nas redes sociais: “Aqueles que exprimem simpatia pelos pontos de vista dos grupos opostos podem sentir repercussões da sua própria corte.” Por outras palavras, os extremistas políticos não disparam apenas dardos contra os seus inimigos; gastam muitas das suas munições em alvos dissidentes ou pensadores flexíveis da sua própria equipa. Desta forma, as redes sociais são um sistema político baseado em compromissos parados.
Por último, ao dar a todos uma pistola de dardos, as redes sociais deram a todos a liberdade de fazer a justiça sem um julgamento adequado. As plataformas como o Twitter tornam-se no Velho Oeste, onde os vigilantes não são responsabilizados. Um ataque bem-sucedido atrai uma catadupa de gostos e ataques subsequentes. As plataformas de viralidade melhorada facilitam assim a punição coletiva em massa por crimes pequenos ou imaginados, com consequências reais, incluindo pessoas inocentes que perdem os seus empregos e outras que ficam tão envergonhadas que se suicidam. Quando a nossa praça pública é governada por dinâmicas de multidão descontroladas pelo julgamento adequado não obtemos justiça e inclusão, obtemos uma sociedade que ignora o contexto, a proporcionalidade, a misericórdia e a verdade.
ESTUPIDEZ ESTRUTURAL
Desde que a torre caiu, todos os tipos de debates ficaram cada vez mais confusos. O obstáculo mais generalizado ao bom pensamento é o enviesamento da confirmação, que se refere à tendência humana de procurar apenas provas que confirmem as nossas crenças preferidas. Mesmo antes do advento das redes sociais, os motores de busca estavam sobrecarregados de enviesamentos de confirmação, tornando muito mais fácil para as pessoas encontrarem provas de crenças absurdas e teorias de conspiração, tais como que a Terra é plana e que os ataques do 11 de Setembro foram encenados pelo Governo americano. Mas as redes sociais pioraram muito as coisas.
A cura mais confiável para o enviesamento de confirmação é a interação com pessoas que não compartilham as mesmas crenças. Confrontam-nos com contraprovas e contra-argumentos. John Stuart Mill afirmou que “Quem conhece apenas o seu lado de um caso, sabe pouco sobre ele” e instou-nos a procurar opiniões contraditórias “de pessoas que acreditam realmente nelas”. As pessoas que pensam de forma diferente e estão dispostas a falar se não concordarem com o que dizemos, tornam-nos mais espertos, quase como se fossem continuações do nosso próprio cérebro. As pessoas que tentam silenciar ou intimidar os seus críticos tornam-se mais estúpidas, quase como se atirassem dardos ao seu próprio cérebro.
No seu livro “The Constitution of Knowledge” (“A Constituição do Conhecimento”), Jonathan Rauch descreve um avanço histórico no qual as sociedades ocidentais desenvolveram um “sistema operativo epistémico” — isto é, um conjunto de instituições para gerar conhecimento a partir das interações de indivíduos tendenciosos e cognitivamente falaciosos. A lei inglesa desenvolveu o sistema contraditório para que os defensores tendenciosos pudessem apresentar ambos os lados de um caso a um júri imparcial. Os jornais cheios de mentiras evoluíram para empresas jornalísticas profissionais, com normas que exigiam a procura por vários lados de uma história, seguidas de revisão editorial, seguida de verificação de factos. As universidades evoluíram de instituições medievais compartimentadas para centros de investigação, criando uma estrutura na qual os académicos apresentam alegações com base em provas, sabendo que outros académicos de todo o mundo ficariam motivados a ganhar prestígio, encontrando provas contrárias.
Parte da grandeza da América no século XX veio de ter desenvolvido a rede mais capaz, vibrante e produtiva de instituições produtoras de conhecimento em toda a história humana, ligando as melhores universidades do mundo, empresas privadas que transformaram os avanços científicos em produtos de consumo que alteraram a nossa vida e agências governamentais que apoiaram a investigação científica e lideraram a colaboração que pôs o Homem na lua.
Mas este acordo, observa Rauch, “não se mantém sozinho; depende de uma série de contextos e entendimentos sociais por vezes delicados, que precisam de ser compreendidos, afirmados e protegidos”. Então, o que acontece quando uma instituição não é bem mantida e o desacordo interno acaba, ou porque as pessoas se tornaram ideologicamente uniformes ou porque têm medo de discordar?
Creio que foi isso que aconteceu a muitas das principais instituições norte-americanas em meados e no final da década de 2010. Estupidificaram em massa porque as redes sociais instilaram nos seus membros um medo crónico de ser atacado. A mudança foi mais pronunciada em universidades, associações académicas, indústrias criativas e organizações políticas a todos os níveis (nacional, estatal e local), e foi tão difundida que estabeleceu novas normas comportamentais apoiadas por novas políticas, aparentemente de um dia para o outro. A nova omnipresença de redes sociais de viralidade reforçada significou que uma única palavra pronunciada por um professor, líder ou jornalista, mesmo que falada com uma intenção positiva, poderia conduzir a uma tempestade nas redes sociais, desencadeando um despedimento imediato ou uma prolongada investigação levada a cabo pela instituição. Os participantes das nossas principais instituições começaram a autocensurar-se de forma pouco saudável, abstendo-se de criticar políticas e ideias que acreditavam estarem mal sustentadas ou erradas — mesmo as apresentadas pelos seus alunos nas salas de aula.
Mas quando uma instituição pune a divergência interna, atira dardos ao seu próprio cérebro.
O processo de estupidificação desenrola-se de maneira diferente à direita e à esquerda porque as suas alas ativistas subscrevem narrativas diferentes com valores sagrados diferentes. O estudo “Tribos Ocultas” diz-nos que os “conservadores devotos” obtiveram a pontuação mais alta nas crenças relacionadas com o autoritarismo. Partilham uma narrativa na qual a América está eternamente sob a ameaça de inimigos externos e subversivos internos; veem a vida como uma batalha entre patriotas e traidores. De acordo com a politóloga Karen Stenner, em cujo trabalho se baseou o estudo “Tribos Ocultas”, estes são psicologicamente diferentes do grupo maior de “conservadores tradicionais” (19% da população), que enfatizam a ordem, o decoro e uma mudança lenta e não radical.
Apenas no âmbito das narrativas dos conservadores devotos fazem sentido os discursos de Donald Trump, desde a abominável diatribe de abertura da sua campanha sobre “violadores” mexicanos até ao seu aviso, no dia 6 de janeiro de 2021: “Se não lutares com todas as tuas forças, já não vais ter um país.”
O castigo tradicional por traição é a morte, daí o grito de batalha usado no dia 6 de janeiro: “Enforquem o Mike Pence.” As ameaças de morte da direita, muitas feitas através de contas anónimas, estão a revelar-se eficazes na intimidação de conservadores tradicionais, por exemplo, ao afastar responsáveis eleitorais locais que não conseguiram “parar o roubo”. A onda de ameaças feitas a membros republicanos dissidentes do Congresso também levou muitos dos moderados que ainda restam a abandonar ou a ficar calados, dando-nos um partido cada vez mais afastado da tradição conservadora, da responsabilidade constitucional e da realidade. Temos agora um Partido Republicano que descreve um ataque violento ao Capitólio dos EUA como “discurso político legítimo”, apoiado — ou pelo menos não contrariado — por uma série de grupos de reflexão e organizações de comunicação social de direita.
A estupidez à direita é mais visível nas muitas teorias da conspiração que se espalham através dos meios de comunicação social de direita e agora no Congresso. O Pizzagate, o QAnon, a crença de que as vacinas contêm microchips e a convicção de que Donald Trump venceu a reeleição — é difícil imaginar que qualquer uma destas ideias ou sistemas de crenças atingisse os níveis atuais sem o Facebook e o Twitter.
Os democratas também foram duramente atingidos pela estupidez estrutural, embora de uma forma diferente. No Partido Democrático, a luta entre a ala progressista e as fações mais moderadas é aberta e contínua, e muitas vezes os moderados ganham. O problema é que a esquerda controla os altos comandos da cultura: universidades, organizações noticiosas, Hollywood, museus de arte, publicidade, grande parte de Silicon Valley, e os sindicatos de professores e faculdades de ensino que moldam a educação do ensino primário ao secundário. E em muitas dessas instituições, a dissidência foi sufocada: quando todos tiveram acesso a uma pistola de dardos no início da década de 2010, muitas instituições de esquerda começaram a disparar contra si próprias. E, infelizmente, essas são as pessoas que informam, instruem e entretêm a maior parte do país.
Os liberais do final do século XX partilharam a convicção do que o sociólogo Christian Smith apelidou de narrativa de “progresso liberal”, na qual os Estados Unidos costumavam ser horrivelmente injustos e repressivos, mas, graças às lutas de ativistas e heróis, fez (e continua a fazer) progressos no sentido de concretizar a nobre promessa da sua fundação. Esta história apoia facilmente o patriotismo liberal e foi a narrativa animadora da presidência de Barack Obama. É também a opinião dos “liberais tradicionais” no estudo das “Tribos Ocultas”— 11% da população, que têm fortes valores humanitários, são mais velhos do que a média e são em grande parte as pessoas que lideram as instituições culturais e intelectuais dos EUA.
Mas quando as plataformas de redes sociais recém-viralizadas deram a todos uma pistola de dardos, foram os ativistas progressistas mais jovens que mais atiraram, e apontaram um número desproporcional de dardos a estes líderes liberais mais velhos. Confusos e assustados, os líderes raramente desafiaram os ativistas ou a sua narrativa não liberal, na qual a vida em cada instituição é uma batalha eterna entre grupos de identidade sobre um gráfico de soma zero, e as pessoas no topo conseguiram lá chegar oprimindo as pessoas em baixo. Esta nova narrativa é rigidamente igualitária — focada na igualdade de resultados, e não nos direitos ou oportunidades. Não está preocupada com os direitos individuais.
A acusação universal contra as pessoas que discordam desta narrativa não é “traidor”; é “racista”, “transfóbico”, “Karen”, ou alguma outra letra escarlate que marca o autor como alguém que odeia ou prejudica um grupo marginalizado. A punição que parece ser a correta para estes crimes não é a execução; é a humilhação pública e a morte social.
É possível ver com mais clareza o processo de estupefação quando uma pessoa de esquerda apenas aponta investigações que questionam ou contradizem uma opinião favorecida entre ativistas progressivos. Alguém no Twitter vai encontrar uma maneira de associar o dissidente ao racismo, e outros se seguirão. Por exemplo, na primeira semana de protestos após a morte de George Floyd, alguns dos quais incluíram violência, o analista de políticas progressistas David Shor, que na altura trabalhava na Civis Analytics, tweetou um link para um estudo que mostrava que protestos violentos na década de 60 levaram a recuos eleitorais para os democratas nos distritos próximos. Shor estava claramente a tentar ajudar, mas na indignação que se seguiu foi acusado de “negrofobia” e foi rapidamente demitido do seu trabalho. (A Civis Analytics negou que o analista tenha sido despedido por causa desse tweet.)
O caso Shor tornou-se famoso, mas todos no Twitter já tinham visto dezenas de exemplos que ensinavam uma lição básica: não questione as crenças, políticas ou ações do seu próprio lado. E quando os liberais tradicionais se calam, como tantos fizeram no verão de 2020, a narrativa mais radical dos ativistas progressistas assume o papel de narrativa governante de uma organização. É por isso que tantas instituições epistémicas pareceram “acordar” numa rápida sucessão nesse ano e no seguinte, começando por uma onda de controvérsias e demissões no “The New York Times” e noutros jornais, e continuando com declarações sobre justiça social por grupos de médicos e associações médicas (uma publicação da American Medical Association e da Association of American Medical Colleges, por exemplo, aconselhou profissionais de saúde a referirem-se a bairros e comunidades como “oprimidos” ou “sistematicamente alienados” em vez de “vulneráveis” ou “pobres”), e com a transformação apressada dos currículos nas escolas privadas mais caras da cidade de Nova Iorque.
Tragicamente, vemos a estupefação em ambos os lados da guerra covid. A direita tem estado tão empenhada em minimizar os riscos que transformou a doença numa doença que mata preferencialmente os republicanos. A esquerda progressista está tão empenhada em maximizar os perigos da covid que muitas vezes abraça uma estratégia igualmente maximalista, de estratégias padrão para vacinas, máscaras e distanciamento social, mesmo no que diz respeito às crianças. Tais políticas não são tão mortíferas como espalhar receios e mentiras sobre vacinas, mas muitas delas têm sido devastadoras para a saúde mental e a educação das crianças, que precisam desesperadamente de brincar umas com as outras e ir para a escola; temos poucas provas claras de que os encerramentos das escolas e as máscaras para crianças pequenas reduzam as mortes decorrentes da covid. Mais notável para a história que estou aqui a contar, os pais progressistas que argumentavam contra o encerramento das escolas eram frequentemente trucidados nas redes sociais e depararam-se com as omnipresentes acusações esquerdistas de racismo e supremacia branca. Outros em cidades “azuis” (democratas) aprenderam a ficar calados.
A política americana está a ficar cada vez mais ridícula e disfuncional, mas não porque os americanos estão a ficar menos inteligentes. O problema é estrutural. Graças ao reforço da viralidade das redes sociais, a dissidência é punida no seio de muitas das nossas instituições, o que significa que as más ideias são elevadas a política oficial.
VAI FICAR MUITO PIOR
Numa entrevista de 2018, Steve Bannon, antigo conselheiro de Donald Trump, disse que o modo de lidar com os meios de comunicação social é “inundá-los com merda”. Ele estava a descrever a tática “inundação de mentiras” iniciada por programas de desinformação russos para manter os norte-americanos confusos, desorientados e zangados. Mas naquela época, em 2018, havia um limite superior para a quantidade de merda disponível, porque tudo isso tinha que ser criado por uma pessoa (à exceção de algum material de baixa qualidade produzido por bots).
No entanto agora, a inteligência artificial está perto de permitir a propagação ilimitada da desinformação altamente credível. O programa de inteligência artificial (IA) GPT-3 já é tão bom que é possível dar-lhe um tópico e um tom e ele vai cuspir tantos ensaios quantos quisermos, normalmente com uma gramática perfeita e um surpreendente nível de coerência. Num ou dois anos, quando o programa for atualizado para o GPT-4, tornar-se-á muito mais capaz. Num ensaio de 2020 intitulado “The Supply of Disinformation Will Soon Be Infinite” (O fornecimento de desinformação será em breve infinito), Renée DiResta, diretora de investigação do Observatório da Internet de Stanford, explicou que a propagação de mentiras, seja através de texto, imagens ou vídeos profundamente falsos, tornar-se-á em breve inconcebivelmente fácil. (Renée coescreveu o ensaio com o GPT-3.)
As fações norte-americanas não serão as únicas a utilizar a IA e as redes sociais para gerar conteúdos de ataque; os nossos adversários também o farão. Num ensaio assombroso de 2018 intitulado “The Digital Maginot Line” (A linha Maginot digital), DiResta descreveu claramente o estado das coisas. “Estamos imersos num conflito em evolução e contínuo: uma guerra mundial de informação em que os intervenientes estatais, os terroristas e os extremistas ideológicos alavancam a infraestrutura social subjacente à vida quotidiana para semear a discórdia e desgastar a realidade partilhada”, escreveu. Os soviéticos costumavam ter de enviar agentes ou criar americanos dispostos a obedecer às suas ordens. Mas as redes sociais tornaram mais barato e fácil para a Agência de Investigação de Internet russa inventar eventos falsos ou distorcer eventos reais para instigar raiva, tanto à esquerda como à direita, muitas vezes sobre a raça. Investigações posteriores mostraram que uma campanha intensiva começou no Twitter em 2013, mas logo se espalhou ao Facebook, Instagram e YouTube, entre outras plataformas. Um dos principais objetivos era polarizar o público americano e espalhar a desconfiança, separando-nos no exato ponto fraco que Madison tinha identificado.
Sabemos agora que não são apenas os russos que atacam a democracia americana. Antes dos protestos de 2019 em Hong Kong, a China tinha-se concentrado principalmente em plataformas nacionais, como a WeChat. Mas agora está a descobrir o quanto pode fazer com o Twitter e o Facebook, por tão pouco dinheiro, no seu conflito crescente com os EUA. Dados os avanços em IA que a China está a fazer, podemos esperar que a inteligência artificial se torne mais hábil nos próximos anos, dividindo ainda mais a América e unindo ainda mais a China.
No século XX, a identidade partilhada da América como o país que lidera a luta para tornar o mundo seguro para a democracia foi uma força forte que ajudou a manter a cultura e a constituição juntas. No século XXI, as empresas de tecnologia americanas reajustaram o mundo e criaram produtos que parecem agora ser corrosivos para a democracia, obstáculos à compreensão partilhada e destruidores da torre moderna.
A DEMOCRACIA DEPOIS DE BABEL
Nunca poderemos voltar à forma como as coisas eram na era pré-digital. As normas, instituições e formas de participação política que se desenvolveram durante a longa era da comunicação em massa não vão funcionar bem agora que a tecnologia tornou tudo muito mais rápido e em muitas mais direções e quando evitar os guardiões profissionais, é tão fácil. E, no entanto, a democracia americana está agora a funcionar fora dos limites da sustentabilidade. Se não fizermos mudanças importantes em breve, então as nossas instituições, o nosso sistema político e a nossa sociedade podem desmoronar durante a próxima grande guerra, pandemia, colapso financeiro ou crise constitucional.
Que alterações são necessárias? Redesenhar a democracia para a era digital está muito além das minhas capacidades, mas posso sugerir três categorias de reformas — três objetivos que devem ser alcançados para que a democracia permaneça viável na era pós-Babel. Temos de endurecer as instituições democráticas para que possam resistir à raiva e à desconfiança crónicas, reformar as redes sociais para que se tornem menos corrosivas do ponto de vista social e preparar melhor a próxima geração para a cidadania democrática nesta nova era.
ENDURECER AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS
É provável que a polarização política aumente num futuro próximo. Assim, independentemente do que fizermos, temos de reformar instituições-chave para que possam continuar a funcionar, mesmo que os níveis de raiva, desinformação e violência aumentem muito acima dos que temos hoje.
Por exemplo, o poder legislativo foi concebido para exigir um compromisso, mas o Congresso, as redes sociais, e os canais partidários de notícias por cabo evoluíram de tal forma que qualquer legislador que se chegue perto da outra parte poderá, em poucas horas, enfrentar a indignação da ala mais extrema do seu partido, prejudicando as suas perspetivas de angariação de fundos e aumentando o risco de ser desafiado para eleições primárias no próximo ciclo eleitoral.
As reformas devem reduzir a enorme influência de extremistas irritados e tornar os legisladores mais sensíveis ao eleitorado médio do seu distrito. Um exemplo de tal reforma é acabar com as eleições primárias fechadas dos partidos, substituindo-as por uma eleição primária única, apartidária e aberta, a partir da qual os vários principais candidatos avançam para uma eleição geral que também utiliza a votação por escolha classificada. Uma versão deste sistema de votação já foi implementada no Alasca, e parece ter dado mais latitude à senadora Lisa Murkowski para se opor ao antigo Presidente Trump, cujo candidato preferido seria uma ameaça a Murkowski numa eleição primária Republicana fechada, mas não numa versão aberta.
Uma segunda forma de endurecer as instituições democráticas é reduzir o poder de qualquer partido político de jogar o sistema a seu favor, por exemplo, desenhando os seus distritos eleitorais preferidos ou selecionando os funcionários que irão supervisionar as eleições. Todos estes empregos deveriam ser feitos de uma forma apartidária. A investigação sobre justiça processual mostra que quando as pessoas percebem que um processo é justo, são mais propensas a aceitar a legitimidade de uma decisão que vai contra os seus interesses. Basta pensar nos danos já causados à legitimidade do Supremo Tribunal pela liderança republicana do Senado, quando bloqueou o nome de Merrick Garland para um lugar que ficou vago nove meses antes das eleições de 2016 e, em seguida, apressou a nomeação de Amy Coney Barrett em 2020. Uma reforma discutida por todos acabaria com estes esquemas políticos colocando os juízes com mandatos alternados de 18 anos de modo que cada presidente fizesse uma nomeação a cada dois anos.
REFORMAR AS REDES SOCIAIS
Uma democracia não pode sobreviver se as suas praças públicas forem lugares onde as pessoas receiam falar livremente e onde não se possa chegar a um consenso estável. O poder que as redes sociais dão à extrema-esquerda, à extrema-direita, aos trolls nacionais e aos agentes estrangeiros está a criar um sistema que se assemelha menos a uma democracia e mais ao domínio do mais agressivo.
Mas nós conseguimos reduzir a capacidade das redes sociais de dissolver a confiança e fomentar a estupidez estrutural. As reformas devem limitar a amplificação que as plataformas dão às franjas agressivas, dando ao mesmo tempo mais voz ao que a More in Common chama de “a maioria exausta”.
Aqueles que se opõem à regulação das redes sociais concentram-se geralmente na preocupação legítima de que as restrições impostas pelo governo aos conteúdos irão, na prática, levar à censura. Mas o principal problema das redes sociais não é que algumas pessoas publiquem conteúdos falsos ou tóxicos; é que os conteúdos falsos e que provocam a indignação podem agora atingir um nível de alcance e influência que não era possível antes de 2009. A denunciante do Facebook Frances Haugen defende mudanças simples na arquitetura das plataformas, em vez de esforços maciços e, em última análise, fúteis para policiar todo o conteúdo. Por exemplo, sugeriu modificar a função de “partilha” no Facebook para que, depois de qualquer conteúdo ter sido partilhado duas vezes, a terceira pessoa na cadeia tem de perder tempo a copiar e colar o conteúdo numa nova publicação. Reformas como esta não são censura; são neutras em termos de pontos de vista e neutras em termos de conteúdo, e funcionam igualmente bem em todas as línguas. Não impedem ninguém de dizer nada; apenas abrandam a propagação de conteúdos que, em média, é menos provável que sejam verdadeiros.
Talvez a maior alteração que reduziria a toxicidade das plataformas existentes fosse a verificação do utilizador como condição prévia para obter a amplificação algorítmica que as redes sociais oferecem.
Os bancos e outras indústrias têm regras de “conhecer os seus clientes” para que não possam negociar com clientes anónimos que lavam dinheiro de empresas criminosas. As grandes plataformas de redes sociais deveriam ser obrigadas a fazer o mesmo. Isso não significa que os utilizadores teriam que publicar usando os seus nomes verdadeiros; poderiam continuar a fazê-lo através de um pseudónimo. Significa apenas que, antes de uma plataforma difundir as suas palavras para milhões de pessoas, tem a obrigação de verificar (talvez através de terceiros ou organizações sem fins lucrativos) que o utilizador é um ser humano real, num determinado país, e que tem idade para usar a plataforma. Esta mudança eliminaria a maior parte das centenas de milhões de bots e de contas falsas que poluem atualmente as principais plataformas. Também reduziria provavelmente a frequência das ameaças de morte, ameaças de violação, maldade racista e trolls em geral. Estudos mostram que o comportamento antissocial se torna mais comum online quando as pessoas sentem que a sua identidade é desconhecida e que não podem ser localizados.
De qualquer forma, a crescente prova de que as redes sociais estão a prejudicar a democracia é suficiente para garantir uma maior supervisão por parte de um organismo regulador, como a Comissão Federal das Comunicações ou a Comissão Federal do Comércio. Uma das prioridades deve ser obrigar as plataformas a partilhar os seus dados e os seus algoritmos com investigadores académicos.
PREPARAR A PRÓXIMA GERAÇÃO
Os membros da geração Z — aqueles nascidos em e depois de 1997 — não têm qualquer culpa da confusão em que estamos, mas vão herdá-la, e os sinais preliminares são que as gerações mais velhas os impediram de aprender a lidar com ela.
A infância tornou-se mais estritamente circunscrita nas gerações recentes — com menos oportunidades de brincar de forma livre e não estruturada; menos tempo para brincar na rua sem supervisão; mais tempo online. Quaisquer que sejam os efeitos destas mudanças, é provável que tenham impedido o desenvolvimento de capacidades necessárias para uma autogovernação eficaz para muitos jovens adultos. A brincadeira livre não supervisionada é a forma que a natureza tem de ensinar aos jovens mamíferos as habilidades de que irão precisar quando crescerem, que para os seres humanos incluem a capacidade de cooperar, criar e aplicar regras, fazer cedências, julgar conflitos e aceitar a derrota. Um ensaio brilhante de 2015 do economista Steven Horwitz argumentou que a brincadeira livre prepara as crianças para a “arte de associação” que Alexis de Tocqueville disse ser a chave para a vitalidade da democracia americana; também argumentou que a sua perda representava “uma séria ameaça para as sociedades liberais”. Uma geração impedida de aprender essas habilidades sociais, advertiu Horwitz, recorreria habitualmente às autoridades para resolver disputas e sofreria um “embrutecimento da interação social” que iria “criar um mundo com mais conflito e violência”.
E embora as redes sociais tenham desgastado a arte da associação em toda a sociedade, podem deixar as suas marcas mais profundas e duradouras sobre os adolescentes. No início de 2010 surgiu, de repente, um aumento nas taxas de ansiedade, depressão e automutilação entre adolescentes americanos. (O mesmo aconteceu com os adolescentes canadianos e britânicos, na mesma altura.) A causa não é conhecida, mas o facto de ter acontecido naquela altura aponta para as redes sociais como um grande contribuidor — o aumento começou quando a grande maioria dos adolescentes americanos se tornou utilizadores diários das principais plataformas. Estudos correlacionais e experimentais corroboram essa ligação com a depressão e a ansiedade, assim como relatos dos próprios jovens e de pesquisas feitas pelo próprio Facebook, conforme noticiado pelo “Wall Street Journal”.
A depressão faz com que as pessoas tenham menos probabilidade de se envolverem com novas pessoas, ideias e experiências. A ansiedade faz com que as coisas novas pareçam mais ameaçadoras. À medida que estas doenças aumentam e as lições sobre o comportamento social matizado apreendidas através da brincadeira livre são adiadas, a tolerância para diferentes pontos de vista e a capacidade de resolver disputas diminuíram entre muitos jovens. Por exemplo, as comunidades universitárias que poderiam tolerar uma série de oradores diferentes tão recentemente quanto 2010 provavelmente começaram a perder essa habilidade nos anos seguintes, à medida que a geração Z começou a chegar ao campus. As tentativas de desconvidar oradores aumentaram. Os estudantes não disseram apenas que discordavam com os oradores; alguns disseram que essas palestras seriam perigosas, emocionalmente devastadoras, uma forma de violência. Uma vez que as taxas de depressão e ansiedade jovem continuaram a subir na década de 2020, podemos supor que estas opiniões continuem nas gerações seguintes, e de facto se tornem mais graves.
A mudança mais importante que podemos fazer para reduzir os efeitos nocivos das redes sociais sobre as crianças é atrasar a sua entrada até que tenham passado pela puberdade. O Congresso deverá atualizar a Lei de Proteção da Privacidade Online da Criança, de 1998, que imprudentemente definia a idade da chamada maioridade na internet (a idade em que as empresas podem recolher informações pessoais de crianças sem o consentimento dos pais/encarregados de educação) nos 13 anos, ao mesmo tempo que prevê uma aplicação eficaz. A idade deve ser aumentada para pelo menos 16 anos e as empresas devem ser responsabilizadas pela sua aplicação.
Mais genericamente, a coisa mais importante que podemos fazer para preparar os membros da próxima geração para a democracia pós-Babel, talvez seja deixá-los brincar. Parar de privar as crianças das experiências de que mais necessitam para se tornarem bons cidadãos: brincadeiras livres, em grupos de crianças de várias idades com uma supervisão mínima de adultos. Todos os estados devem seguir o exemplo do Utah, Oklahoma e Texas e promulgar uma versão da Free-Range Parenting Law (Lei da Parentalidade Livre) que ajuda a garantir aos pais que não serão investigados por negligência se os seus filhos de oito ou nove anos forem vistos a brincar num parque. Com tais leis em vigor, as escolas, os educadores e as autoridades de saúde pública devem então encorajar os pais a deixar os seus filhos ir a pé para a escola e a brincar em grupos ao ar livre, tal como mais crianças costumavam fazer.
ESPERANÇA DEPOIS DE BABEL
A história que contei é sombria e há poucos indícios que sugiram que a América irá voltar a alguma aparência de normalidade e estabilidade nos próximos cinco ou dez anos. Que lado se irá tornar conciliador? Qual é a probabilidade do Congresso promulgar reformas importantes que fortaleçam as instituições democráticas ou desintoxiquem as redes sociais?
No entanto, quando nos afastamos do nosso governo federal disfuncional, nos desligamos das redes sociais e falamos diretamente com os nossos vizinhos, parece haver mais esperança. A maioria dos americanos no relatório do More in Common faz parte da “maioria exausta”, que está cansada dos combates e está disposta a ouvir o outro lado e chegar a um compromisso. A maioria dos americanos vê agora que as redes sociais estão a ter um impacto negativo no país, e estão a tornar-se mais conscientes dos seus efeitos nocivos sobre as crianças.
Vamos fazer alguma coisa em relação a isso?
Quando Tocqueville visitou os Estados Unidos na década de 1830 ficou impressionado com o hábito americano de formar associações voluntárias para resolver problemas locais, em vez de esperarem que reis ou nobres atuassem, como os europeus fariam. Esse hábito ainda hoje permanece connosco. Nos últimos anos, os americanos criaram centenas de grupos e organizações dedicados a construir a confiança e a amizade para lá da divisão política, incluindo o BridgeUSA, o Braver Angels (de cujo conselho faço parte), e muitos outros apresentados emBridgeAlliance.us. Não podemos esperar que o Congresso e as empresas de tecnologia nos salvem. Temos de nos mudar a nós próprios e às nossas comunidades.
Como teria sido viver em Babel nos dias após a sua destruição? Nós sabemos. É um momento de confusão e perda. Mas é também um momento para refletir, ouvir e construir.
Ilustrações: Hélder Oliveira | Tradução Joana Henriques
Artigo originalmente publicado na edição de maio de 2022 da revista “The Atlantic”
Expresso Semanário#2592, de 1 de julho de 2022
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