terça-feira, 12 de julho de 2022

Enganos e humilhações

 


SMS BARALHADOS, MENSAGENS ERRADAS, EMOJIS TROCADOS. QUEM NUNCA?

J

á lá vão uns 20 anos. Ainda não havia smartphones, WhatsApp ou Instagram. Os humanos comunicavam por SMS em telemóveis Nokia de visores pequenitos — ai, quão mais pequenos irão ser os telemóveis no futuro? — e estava esparramado à beira de uma piscina. Estes detalhes são importantes. Sabe-se lá por que motivo decido enviar a já não sei quem uma mensagem a desancar um chefe que tinha na altura. Coisa que deve ter surgido após uma complexa rede de conexões desvairadas só ao alcance de quem está ao sol na piscina com um Nokia com três pauzinhos de rede. E escrevi a tal mensagem apenas por travessura. Só me lembro que era mazinha. E ela lá começou o penoso caminho de iniciar o send a ir lentamente no visor anos 90. O que se passou a seguir são várias ações em simultâneo que poderão ter ocorrido em décimas de segundo, não faço ideia. Primeiro constatei que estava a enviar o SMS para o objeto da ofensa. Ou seja, estava a dizer mal de X e a enviar a mensagem para X e não para o confidente Y. A seguir consegui tirar a bateria do telemóvel e atirá-lo violentamente para a piscina. Desespero puro. Se já não tinha bateria, para quê afogar o aparelho? Sei que ficou inutilizado. Até hoje não sei se recebeu a mensagem.

Conto esta história porque todos os sistemas de mensagens estão atualmente a resolver este drama que toca a muitos — e que não tem a ver com tecnologia mas sim com parvoíce-distração pura: o horrível embaraço de enviar mensagens para a pessoa errada. Tenho a certeza de que os alemães saberão criar uma palavra para isto, caso não a tenham já, e que num só termo sintetizam: “Vergonha agoniante e esmagadora de enviar mensagem de texto para pessoa errada e constatar que se é uma besta.”

Quantos problemas e dramas globais o Gmail não impediu ao recentemente dar aqueles dois segundos em que se pode fazer unsend a uma mensagem de e-mail? Já quanto à capacidade de apagar as mensagens no WhatsApp depois de enviadas, a questão resolve-se e não se resolve totalmente. Uma pessoa manda uma porcaria qualquer para a pessoa errada ou a coisa errada para a pessoa certa e decide apagar, mas fica lá a marca a denunciar que apagou. E a pergunta coloca-se, caso não tenha sido lido: o que é que lá estava? E lá terá de sair uma mentirinha que pode levar a mais chatices. Os anglo-saxónicos adoram estas coisas de categorizar e até têm uma classe para certo tipo de escrita em telemóvel, que é o drunk texting, o enviar mensagens em estado de embriaguez às tantas da madrugada. (Há também o ambien texting, que se refere aos disparates que se escrevem sob efeito de um comprimido para dormir, um hipnótico que cá tem outro nome comercial e que tem servido como desculpa para tudo mas já custou carreiras profissionais. Mas é cena mais chique do Twitter.) Ora aprendi que a maioria de “SMS bêbados” são de homens para as suas ex. É um padrão. Um clássico, vá. Ao ponto de as revistas femininas darem conselhos sérios de como lidar com as mensagens bêbadas noturnas dos ex. Não responder, ignorar, etc. E uma segunda fase: o que significam? Hum? É só um disparate? Há algo mais profundo por debaixo da bezana?




Procurei e não descobri a existência de alguém tão aparvalhado quanto eu que tenha consistentemente enviado mensagens para os próprios a falar dos próprios. Gaffe em esteroides. Sim, já me aconteceu várias vezes. Haverá certamente. Não sou assim tão especial. Mas há verdadeiras listas em que pessoas contam as mensagens mais embaraçantes que alguma vez enviaram, e há alguns rapazes que depois de estarem com uma rapariga escrevem a gabar-se e com detalhes gráficos como foi o encontro amoroso e, em vez de mandarem a gabarolice para o amigo, enviam para a própria. Esta é muito má. Bem feita. Dirão. Sim.

É impossível mesurar quanto deste mundo é devido a um efeito borboleta provocado por uma mensagem enviada a um destinatário errado sem hipótese de afogar o telefone numa piscina ou as aplicações não cuidam de dar hipótese à pessoa parar ou apagar a mesma assim que se apercebe do erro, mesmo que este já tenha chegado ao destino.

Navegamos na nossa vida entre enganos, mal-entendidos, interpretações erradas e mesmo assim sobrevivemos sem que por vezes percebamos sequer a tempestade por onde passámos e talvez até criámos. O truque é minimizar riscos. Um pacato cidadão que hoje decida introduzir um mero emoji na sua mensagem — porque acha que todos o fazem, sente a pressão social — está a dar um passo arriscado por desconhecer a polissemia cultural, geográfica e geracional daqueles bonequinhos amarelos. É melhor pensar bem onde se está a meter. Veja-se: “Um dos emojis mais mal interpretados é o com dentes à mostra e olhos fechados (sim, o a rir, digo eu), pois vai depender da plataforma do recetor; nuns parece sorridente, noutros parece estar a sofrer.” Há o problema dos significados escondidos — posso ficar-me pela beringela e pelo pêssego —, mas parece que são dezenas. Há toda a infinitude de nuances que colocam os millennials contra os Z (mais novos) devido ao significado “real” de um emoji. As hipóteses de fazer asneira por mensagem em alfabeto e na língua materna já são tão grandes que os bonecos sorridentes cujo significado depende da idade e geografia do recetor é um risco dispensável. Se é para fazer merda, faça-a de forma digna. Mande uma mensagem ofensiva sobre o chefe por engano ao chefe. Sem emojis.


Luís Pedro Nunes. Mito Lógico, Expresso Semanário#2595, de 8 de julho de 2022

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